Natasha Tinet - Uma alegria difícil
O mais recente lançamento da poeta e artista visual Natasha Tinet, Uma alegria difícil, é um livro sobre encontros, apesar de ter sido escrito durante o isolamento da pandemia, ou talvez exatamente por isso. Uma das três epígrafes é de Millôr Fernandes e expressa bem a aparente contradição do título: "Toda alegria é assim: já vem embrulhada numa tristezinha de papel fino". As outras duas citações são de Clarice Lispector e Wislawa Szymborska, para se ter uma ideia do nível das influências. Aqui, os poemas narrativos são mais extensos e amadurecidos e a emoção substitui o humor e a ironia do seu livro de estreia, Veludo Violento, excelente por sinal.
No primeiro capítulo, chamado simplesmente Encontros, as referências literárias e artísticas que marcaram a poeta, tão diversas quanto: Marguerite Duras, Virginia Woolf, Ingmar Bergman, Katherine Mansfield, Frida Kahlo, Clarice Lispector, Pablo Picasso, Rita Lee e muitos outro(a)s em citações diretas ou indiretas: "estou farta dessa conversa, Ingmar / sueco é língua dura, / salto fino de sapato no chão de taco / estragando o verniz da anfitriã da festa / por essa Mrs. Dalloway não esperava / mas ali estava ela / no jogo de retribuir convites / perdendo no lance de dados / sem chances de abolir o acaso." (Ingmar face a face com Mrs. Dalloway, p. 19)
Em Satori, a inspiração vem do oriente, mas a lembrança do pai é mais forte e bonita: "[...] meu pai, como o primeiro imperador da China / atrasa nossa refeição, dispõe do tempo como um tirano / deixando seu povo à beira da fome, fica ali brincando deslizando feijão por feijão sobre a mesa / a espera é uma areia grossa e lenta na ampulheta / meu pai não se liberta do desejo de reencontrar sua mãe / no futuro do qual não despertamos, ela o espera / entre os soldado, animais e acrobatas de terracota." (Meu pai, o primeiro imperador da China, p. 39)
Grutas de Lourdes é um capítulo com um único e longo poema inspirado em uma história familiar sobre cartas e a procura de uma filha perdida. Já em Uma alegria difícil, capítulo que empresta o título ao livro, os poemas se referem ao encontro de Natasha com a sua infância, principalmente no lindo A árvore no final da rua (p. 71): "por isso a aflição de papai ao me ver alta / pendurada nos galhos de cabeça pra baixo / mesmo de longe reconhecia a acrobata / de cabelos estendidos e vinha o sermão / mas eu nunca caí de árvores / eu caía de vergonha."
Fechando o livro, o capítulo Uma poeta velha (p. 78), novamente um único e longo poema sobre um encontro muito especial, Natasha encontra com ela mesma no futuro; o inconfundível estilo bem-humorado da autora está de volta: "[...] o mundo com certeza / será outro e eu estarei lá / fazendo um pequeno sucesso / com minhas mãos tortas de artrite / negando autógrafos, posando / vaidosa e envergadinha para fotos / ostentando na cara um sorriso / amaciado de analgésicos / rindo com gosto do que não se ri / afff / essa poeta velha / que não morre / e ainda faz piada." Deixo com vocês três exemplos da poesia de Natasha Tinet.
Conversas sobre dor
já me apresentei três vezes à minha vizinha de baixo
temos assuntos em comum
conversamos essencialmente sobre dor
bacias quebradas, hérnias de disco, próteses, pinos
o risco das escadas e de cirurgias malfeitas
remédios de nossa farmácia particular
que nem sempre aliviam o sofrimento
de ser assim torta quebrada e remendada.
minha vizina de baixo recomenda o uso de cinta
imagino então as cintas da Frida Kahlo
os espartilhos com faixas de tecido afivelados
o tronco de couro para sustentá-la sentada
gessos hospitalares estampados com frutas
foice e martelo, retalhos de tecido
redomas que abrigaram todas as suas dores
de cervo almejada por flechas
dores de coluna partida, de aborto, de Rivera
Frida chora eu choro por ela eu choro por mim
enquanto mudo de posição na cama
a lombar é uma bigorna, tenho fantasias de
me desmontar, desencaixar o fêmur da bacia
ser uma boneca bebê de plástico oco.
minha vizinha de baixo é meio ciborgue
tem metais espalhados pelo corpo
e uma memória de algodão doce no sol
me apresento:
moro no andar de cima
tenho cinco gatas, um organismo degenerado
escrevo, ela também escreve muito bem
já ganhou até prêmio, dou parabéns
e conversamos mais uma vez sobre dor.
Koi
colando os lábios no vidro do aquário
a criança beija a carpa por compaixão
mimetizando o movimento da boca
de uma adolescente beijando os próprios
joelhos, a língua lambendo a rótula
ansiando por amantes tatuados e silenciosos
uma imagem que só pode ser apreendida
quando esquecida a palavra que seria dita
carpas ornamentais que brilham
em águas barrentas de parques
enquanto bebês capturam sentidos
balbuciando sons e sílabas ]
o sol matinal na ponta dos dedos
que apontam o cardume à mãe
os dois perto demais do lago turvo.
Boulevard mélancolique
Tinha esse quadro na sala
um boulevard italiano ensolarado
que na minha memória se tornou
um cenário urbano de chuva
não fossem os álbuns de fotografia
reclamarem o engano, começaria:
tinha um quadro chuvoso na sala
diante dele eu esperava o retorno
dos meus pais nas sextas de happy hour
a televisão ligada em terceiro plano
depois um sono largo me carregava
do sofá pra cama e era sábado
e nos sábados segundo meu decreto
era proibido chover e se chovia
era domingo e era triste como voltar
de viagem num final de tarde nublado
os pingos cortados pelo vento
sangrando na vidraça do ônibus
a gente fica com sono, dorme
e acorda num escuro balançado
as janelas suadas com luzes distorcidas
eu deixava de ser gente para ser filme
embalada por um sentimento
que eu não conhecia pelo nome
mas tinha a cara de meia molhada
dentro do sapato.
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