Júlio César Bernardes - Onde as verdades nascem

Literatura brasileira contemporânea
Júlio César Bernardes - Onde as verdades nascem - Editora Patuá - 132 Páginas - Capa e Projeto Gráfico: Roseli Vaz - Ilustrações: Dani Olivie - Lançamento: 2022.

Em regiões não precisamente localizadas no tempo e no espaço, porém longe dos grandes centros urbanos brasileiros, os contos de Júlio César Bernardes em seu livro de estreia oscilam entre o realismo mágico, o fantástico e o regionalismo, não se enquadrando de fato em nenhum desses estilos. Na verdade, o autor assume a sua vocação de bom contador de histórias, uma posição carente na nossa literatura atual que algumas vezes se descuida do entretenimento do leitor na busca por renovação e utilização de técnicas experimentais. Nas narrativas de Onde as verdades nascem identificamos alguns dos desafios de um país que precisa resolver suas antigas questões históricas para equilibrar desenvolvimento econômico e justiça social.

No conto de abertura, As Pestes de Aciratuba do Oeste, Cassandra é uma vidente que prevê a devastação da cidade por um incêndio de proporções colossais. Em pouco tempo, todos comprovam o acerto da profecia quando o cerco das chamas provoca outras catástrofes, como a invasão de insetos, serpentes e animais em fuga, assim como a interrupção do fornecimento de alimentos e remédios para o município. Em meio ao caos, os cidadãos se arrependem de terem ridicularizado Cassandra, passando a implorar à vidente, juntamente com as autoridades locais, que ela utilize os seus dons premonitórios para a salvação de todos. O conto de inspiração bíblica nos faz refletir sobre as queimadas que assolam a região Centro-Oeste e a falta de ações governamentais para preservação ambiental.

"Que apesar de ser boa vidente podiam ignorá-la, mesmo caso tratasse dos fatos mais óbvios, era coisa que Cassandra, pela experiência, deveria saber. Mas acontecera só uma vez e seu histórico de premonições concretizadas, desde então, apenas crescera, engordando-lhe a reputação e o bolso, melhores remédios para a frustração. E antevia, com efeito, o porvir, de quem quisesse e qualquer que fosse, mirando búzios, palmas de mão, borras de café, cartas e tudo mais que pudesse não fazer sentido. A fortuna habita o que não tem rumo, dizia, enigmática, e toda errância é estrada pro além, como todo rio dá no mar. Por isso seu recurso predileto era também o mais inconstante: a fumaça. Deleitava-se com a dança inebriante que subia da fogueira de sua sala, aquela vida enorme e sem corpo cuspida pela palha e pelo bagaço de cana, volteando como uma cortina cujas frestas deixavam entrever fragmentos da posteridade. Fora na fumaça que ela vira as coisas mais fantásticas e as mais fúnebres, e foi na fumaça que viu, naquela tarde, o fogaréu impiedoso que circundaria e devastaria a pequena cidade de Aciratuba do Oeste." (p. 10) - Trecho do conto As Pestes de Aciratuba do Oeste

Já em Josué e a Baleia, a carcaça de uma baleia azul encontrada entre as garrafas quebradas e latas amassadas espalhadas pela praia, logo se transforma em abrigo para um morador de rua. A tranquila localidade, em algum ponto do litoral brasileiro, se transforma em ponto de interesse de toda a mídia nacional e internacional, atraindo muitos curiosos. O interesse científico em analisar a ossatura da baleia é prejudicado pela presença do indesejado morador que precisa ser desabrigado, mas como se livrar de Josué sem contrariar a opinião pública? Um intenso debate se estabelece em postagens compartilhadas nas redes sociais para definir o futuro de Josué e sua inusitada residência, afinal um verdadeiro patrimônio da história natural.

"Apesar de toda a fé com que, noite após noite, ao longo de oito anos, ele rogou por um teto sob o qual dormir, e da certeza inabalável de que suas preces seriam atendidas em algum momento, jamais ocorreu a Josué que o presente divino, quando entregue, pudesse ser tão peculiar e precioso como o que encontrou naquela manhã, quando os primeiros raios de sol, já cintilando nas garrafas quebradas e nas latas amassadas espalhadas pela praia, deixaram de iluminar seu rosto curtido por terem esbarrado nas monumentais costelas de uma baleia azul. / A ossatura colossal, com vinte e sete metros de comprimento por quatro de altura, ria da insignificância das coisas terrestres, de coqueiros, palmeiras e postes, e de uma ponta a outra da baía se via sua brancura estonteante, cultivada por um século nas profundezas da Antártica. Não era à toa, pois, que um grupo considerável de turistas já se encontrasse no local, estupefato com o inusitado espetáculo, quando Josué acordou. O que não se explica tão facilmente é que nenhum dos curiosos tenha se aventurado pelo que um dia foram as entranhas do glorioso mamífero, como se reconhecessem, desde então, a natureza privada do terreno demarcado pela carcaça." (p. 42) - Trecho do conto Josué e a Baleia

Em Portal do Paraíso, um delegado investiga o misterioso aparecimento de cabeças decepadas de bonecas penduradas pelos cabelos às fiações dos postes de uma comunidade carente: "Ele vivia se perguntando por que as regiões mais pobres da cidade insistiam em apresentar os nomes mais bonitos. [...] E agora Pereira não conseguia imaginar o paraíso sem cabeças de anjos expostas, suspensas pelos cachos, igualmente loiras e alegres, recebendo os convidados celestiais." Na falta de explicação para o ocorrido, resta ao delegado interrogar Dona Nandinha, uma das moradoras mais antigas, contudo ela insiste que o fenômeno não é decorrente da ação de pessoas e insiste na sua versão fantástica: "O morro tá se livrando do que não é daqui".

"As cabeças balançavam penduradas nos postes. Entre chuteiras falsas e carcaças de pipas, os fios de nylon refletiam a luz morna das lâmpadas públicas. Os olhos vítreos contemplavam o bairro sem piscar, de cima para baixo, de baixo para cima, guiados pela brisa. Os sorrisos escancarados, que bem podiam ser irônicos, ignoravam a imperfeição do morro. Fora há uns dez dias que chegara aos ouvidos de Pereira, delegado do distrito, o primeiro relato. Ele não dera atenção, claro, pois seria absurdo mobilizar o regimento porque um garoto decidira pendurar bonecas nos fios de eletricidade. Algumas coisas a rua deve resolver por si só. Mas uma nova queixa surgiu alguns dias depois, denunciando uma dúzia de cabeças, e no dia seguinte outra, relatando já umas trinta bonecas, progressão que continuou ao longo da semana. Quando, naquela noite, Pereira resolveu visitar o local, encontrou centenas de pequenos rostos de plástico decorando as ruas." (p. 72) - Trecho do conto Portal do Paraíso

Literatura brasileira contemporânea

Sobre o autor: Júlio César Bernardes nasceu em 1993, em Jacareí-SP, e mora há dez anos em São Paulo. É formado em Relações Internacionais e em Linguística e é mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Participou da Antologia Poética LiteraturaBr, tem contos publicados em revistas digitais e foi finalista do prêmio Nascente, promovido pela USP.

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