André de Leones - Vento de queimada

Literatura brasileira contemporânea
André de Leones - Vento de queimada - Editora Record - 518 Páginas - Imagem de capa: Girl with Pink Gun, de Claudia Alvarez (óleo sobre tela, 2012) - Lançamento: 2023.

O mais recente lançamento de André de Leones, Vento de queimada, é um romance ambientado na região Centro-Oeste, entre as cidades de Brasília, Goiânia e outras menos conhecidas, tais como: Silvânia, Minaçu e Vianópolis, locais normalmente ausentes na literatura nacional, nos fazendo refletir como o Brasil é realmente um amontoado de países estrangeiros. A narrativa se passa em 1983, durante o governo de João Figueiredo (1979-85), marcando o final do longo período de governos militares. Não há inocentes entre os personagens, sejam eles matadores de aluguel, políticos corruptos ou simplesmente criminosos, todos irão provocar a dor e o sofrimento de suas vítimas para lucrar o máximo possível e tentar sobreviver.

A escritora Luisa Geisler define bem a essência do livro no seu texto de abertura ao citá-lo como um Tarantino tropical: "A violência se monta numa linguagem tão precisa que se sente o fedor, se ouve em cada fala." De fato, o romance é inspirado pela linguagem dos roteiros cinematográficos e surpreende pela alta velocidade narrativa, abolindo o uso de travessões ou aspas para marcação dos diálogos e a utilização de constantes saltos temporais, assim como descrições visuais detalhadas das cenas que prendem a atenção do leitor ao longo de mais de quinhentas páginas. Não é por acaso que a obra será adaptada para o cinema pela Conspiração Filmes, a exemplo do  livro de estreia de André de Leones, Hoje está um dia morto, transformado em filme em 2019 como Dias vazios, pelo cineasta Robney Bruno Almeida.

"Abre a sacola. Não havia necessidade da foto, bastava dizer o nome do alvo e onde e quando encontrá-lo. Um filho da puta famoso, que merda. Ela memoriza o endereço e o número do telefone, depois rasga a foto, vai ao banheiro, joga na privada e dá a descarga. Observa que o barbudo, pelo menos, não mijou fora do vaso. De volta ao quarto, tira a chave do carro, a arma e o silenciador de dentro da sacola. Parece tudo em ordem. Taurus PT92. Tenho uma igual. A “filha” da Beretta 92. Uma cópia, na verdade. Deus abençoe a indústria nacional. O petróleo é nosso, e o fogo também. Pente carregado. A Beretta foi arma com que aprendeu a atirar. Uma delas, pelo menos. Enrosca e desenrosca o silenciador. Sim, tudo em ordem. É raro que usem silenciadores, ela e o pai, ela ou o pai. Em geral, a ideia é fazer barulho. Ou, na verdade, dada a natureza da maioria dos serviços executados, o barulho é irrelevante. Como na birosca horas antes. Poeira. Fumaça. Uma prega inflamada dos cus de Goiás. Ou naquele posto em Frutal. Três e pouco da manhã. Noite feia. Chuva forte a caminho. Respira fundo e coloca tudo na mochila, inclusive a SIG que a acompanha desde cedo. Não esperar. A gente ou outra pessoa vai ficar de sobreaviso. Grandes bosta. Boa sorte, então." (p. 133)

Isabel, a protagonista, exerce a atividade de matadora de aluguel juntamente com seu pai, William Garcia, um ex-policial que tem uma tatuagem nas costas com a ilustração "Behemoth e Leviatã" de William Blake, de cabeça pra baixo. A dupla trabalha para figuras poderosas e influentes no estado de Goiás com a intermediação de Gordon, um gringo que tem trânsito livre com políticos e empresários brasileiros, além de manter um tórrido relacionamento amoroso nas horas vagas com Isabel. A história da inusitada dupla de matadores, pai e filha, vai sendo revelada aos poucos, incluindo os fatos que levaram a protagonista a abandonar a carreira de historiadora, afinal, como ela afirma em uma de suas frases preferidas: "Não é fácil a vida no circo"

"Desarvorada, Isabel volta a se aproximar da água. Ondas escuras, o sol eclipsado. Mar cor de vinho tinto. O que é aquilo? Firma as vistas. À esquerda, vê algumas figuras caminhando pela areia. Sombras na turvação. Um relâmpago no horizonte. Relâmpago de cinema, falso. Como o flash de uma máquina fotográfica. Não há trovão. Ela espera, observando. Também sabe (adivinha, pressente) que conhece algumas delas. Das sombras que se aproximam. Elas caminham na direção do cavalo. Ele terminou de comer o bebê e a cabeça da mãe-menina, e espera. Sim, ela as conhece: aquele, por exemplo, é Dimas. Há um novo relâmpago e ele surge à frente dela. Nu. Todas as sombras estão nuas. Isabel conta doze. Onze sombras ao redor do cavalo, Dimas ao lado dela. A pele tem uma cor acinzentada. Os olhos de Dimas, de todos eles, foram vazados. Não, não vazados, mas arrancados, extirpados – aqueles dois buracos ali, e mais nada. Oco lá dentro. O mar voltou a emudecer." (p. 285)

Um roteiro de faroeste brasileiro que tem na estruturação dos capítulos referência às obras de Xenofontes (Anábase, Catábase e Parábase), historiador e filósofo ateniense, discípulo de Sócrates. Outras referências literárias e históricas estão inseridas no texto, principalmente nos diálogos normalmente bem-humorados entre Isabel e Gordon. Mais um romance criativo e recomendado de André de Leones, autor com pleno domínio das técnicas narrativas e que sabe como poucos entreter e fazer pensar. 

"Agora, encostada na pia, copo ainda na mão, ela sorri ao se lembrar da conversa e de sua dúvida sobre Maria Bonita. Teria o mesmo fim que ela? Maria Bonita levou um tiro nas costas e outro na barriga, e dizem que ainda estava viva quando lhe cortaram a cabeça. Não se lembra do nome do assassino. José alguma coisa. Está enganada ou há quem afirme que Maria Bonita ganhou esse apelido naquele momento, já morta, a cabeça separada do corpo? Não se lembra. Pode estar enganada. Provável que esteja. Mas, se for o caso, é uma pena que seja conhecida por ele, pelo apelido, pela alcunha dada pelos volantes, por aqueles que a mataram e a desmembraram. Que cena. A mulher ferida, debatendo-se. O assassino se abaixa com a facão. Corta fora a cabeça. Os outros se aproximam, contemplam a cabeça separada do corpo, o rosto. Um deles diz: Ôxe, como era bonita. Parece que também foi violentada post mortem. Que tal estuprar um cadáver decapitado? Ou estupraram primeiro e só depois cortaram a cabeça? Vai saber. Em todo caso, no Brasil, não deixam a mulher em paz nem depois de morta." (p. 367)

Literatura brasileira contemporânea

Sobre o autor: André de Leones (Goiânia, 1980) é autor dos romances:  Vento de queimada (Record, 2023), Eufrates (José Olympio, 2018), Abaixo do paraíso (Rocco, 2016), Terra de casas vazias (Rocco, 2013), Dentes negros (Rocco, 2011), Como desaparecer completamente (Rocco, 2010) e Hoje está um dia morto (Record, 2006), a coletânea de contos Paz na Terra entre os monstros (Record, 2008) e o livro infantojuvenil Daniel está viajando (Quase Oito, 2019). Vive atualmente em São Paulo.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Vento de queimada de André de Leones

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