Marcelo Brandão Mattos - Bagunça
O romance de Marcelo Brandão Mattos me faz lembrar da análise apaixonada de Darcy Ribeiro ao tentar responder à clássica pergunta: "por que o Brasil ainda não deu certo?" Darcy nos considerava uma nova Roma tardia e tropical, lavada em sangue negro e índio. "Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra". Neste bem-humorado lançamento, o autor tenta nos explicar um país que desafia os conceitos de antropologia e cuja identidade está expressa no título do livro, uma saudável bagunça que expressa a força da nação resultante do encontro entre portugueses, índios e negros africanos, formando uma nova etnia muito diferente das matrizes.
Julio é um professor e poeta que recebe o desafio de explicar a brasilidade a Hans, pesquisador dinamarquês que estuda as sociedades multiculturais e pluriétnicas existentes no mundo. Deste encontro nasce uma amizade de muitos anos e que reflete a nossa cultura de acolhimento aos estrangeiros. De fato, as anotações de Hans, ao longo do livro, ajudam a entender que não se trata de um problema de autoestima coletiva definida na tese da "síndrome de vira-lata", segundo as conclusões do pesquisador: "os brasileiros não têm problema de autoestima, mas de autoimagem. Veem-se deturpados no espelho, talvez porque vejam o exterior com lentes idílicas. Ou, de outra forma, tenham um problema de interpretação. [...] Acredito que o brasileiro tenha dificuldade de interpretar, frente ao espelho, a sua própria polimorfia. Ser brasileiro é ser muitos. [...]"
"Também me ocorreu que, culturalmente, a bagunça não deveria ser uma herança europeia. A noção do improviso, o 'dou-meu-jeito' que é próprio da alma brasileira, é parte significativa do complexo e engendrado conceito que meu amigo desejava incorporar. E não havia de pertencer a um povo do centro do mundo essa engenhoca da gambiarra. Certamente a palavra nasceu das nossas feridas, é mestiça como o sangue deste povo. Entendi rapidamente (o que dirimiu a raiva que começara a ter do gringo, desde que me provocara com sua busca lexical) que ele havia notado uma potência nesta que talvez seja a definitiva representação da nossa identidade, para o mal e para o bem. A bagunça é uma síntese, a derradeira instituição brasileira." (p. 25)
A amizade de Julio e Hans tem início quando o pesquisador visita o Rio de Janeiro em 1999 e se interessa pelas peculiaridades da nossa sociedade e cultura. Hans tem bom domínio da língua portuguesa que aprendeu em um curso de extensão na Universidade de Lisboa mas, obviamente, não estava preparado para "sobreviver na selva lexical dos nossos terrenos". Sendo assim, algumas das partes mais divertidas do romance estão nas tentativas de Julio em explicar certas expressões populares intraduzíveis ao visitante nórdico, tais como "bagunça", "borogodó" e muitas outras. A praia, o samba e o chopp ajudam a decifrar a complexidade e diversidade do nosso país que acaba seduzindo o pesquisador, assim como a pele negra e a beleza estonteante de Jurema.
"Onde eu estava com a cabeça quando pronunciei essa palavra a um gringo caçador de expressões brasileiras? Como haveria eu de esclarecer o que agora lhe devia? Não há nada maos difícil do que explicar a um estrangeiro o sentido da palavra 'borogodó'. Tentem! Não é nada aparente, nada que se materialize. Não há expressão ou fala que exprima o sentido real da palavra. O borogodó é metafísico. Tentei explicar com frases que mais o confundiram: 'Ela tem um quê. Ela tem um tchan.' Hans me devolveu um olhar que quase me congelou. Pareceu-lhe que o fazia de bobo. Resolvi encerrar a discussão, enganando-o com uma simplificação: 'Significa que ela é uma pessoa que cativa as outras'. Meu amigo pareceu satisfeito, porque sabia ser verdade a adjetivação que eu propunha, sem precisar saber que eu mentia sobre a questão dos sinônimos. Ele que me perdoasse, mas há limites para a tradução. Como cientista, ele havia de aceitar que há pontos de cultura inacessíveis, mesmo a um antropólogo dedicado." (pp. 82-3)
Em uma nova visita de Hans, os dois amigos viajam para São Paulo e Bahia, constatando outros aspectos da nossa cultura e aprendendo sobre a história e a identidade brasileira. Vinte anos depois, um regime político de extrema direita e uma nova cultura de ódio dividem a nação, surpreendendo o antropólogo dinamarquês que pergunta a Julio: "Aonde foi parar o país que me apresentaste?" Um livro recomendado que certamente nos ajudará a combater um certo complexo de inferioridade enraizado em nossa história, reconhecer um Brasil que ainda precisa ser descoberto pelos próprios brasileiros, como dizia Darcy Ribeiro: "A confluência de tantas e tão variadas matrizes formadoras poderia ter resultado numa sociedade multiétnica, dilacerada pela oposição de componentes diferenciados e imiscíveis. Ocorreu justamente o contrário."
"Ainda não sei. Ninguém sabe. Essa talvez seja a resposta mais difícil de dar a um amigo estrangeiro, mais difícil do que a bagunça... O que aconteceu com o Brasil para se tornar este palco de ódios onde os cidadãos foram capazes de eleger a violência como representante político? Isso ninguém pode explicar. Compreendi imediatamente as preocupações de Hans. Emocionei-me até. Como estudioso, ele sabe da nossa história de ditaduras, se recorda de que por aqui se matou e se torturou em nome da 'ordem' (e do 'progresso'), sabe do quanto a informação foi cassada e a comunicação restrita. Era comovente a sua preocupação. E agora fazia sentido que não me tivesse dito nada por antecipação. Temia a interceptação das nossas conversas, num estado de exceção que era potencializado no seu imaginário." (p. 195)
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