Viviane Ferreira Santiago - Porém, a mala sempre esteve pronta
Os contos de Viviane Ferreira Santiago nesta sua mais recente coletânea, "Porém, a mala sempre esteve pronta", têm em comum a presença de crianças como protagonistas. Contudo, não é a ingenuidade da infância que é abordada nas narrativas muito breves, as quais em sua maioria destacam situações de violência física e psicológica vivenciadas por meninos e meninas que perdem muito cedo a inocência, invadida e roubada pelo mundo dos adultos, tornando-se assim testemunhas involuntárias de um mundo cruel nos próprios lares. Afinal, é preciso cuidado porque "criança escuta tudo" como nos alerta um desses pequenos personagens.
A autora nos apresenta um universo que, infelizmente, já é bem conhecido dos noticiários locais, incluindo os recorrentes episódios de violência doméstica contra as mulheres, resultantes da desigualdade social nas comunidades carentes. Contudo, aqui a sensibilidade dos textos surpreende com um ponto de vista original que nos faz lembrar do conselho de José Saramago sobre a necessidade de não envergonharmos ao longo da vida a criança que fomos um dia. Eis aqui um exercício de literatura muito recomendado para pensarmos sobre isso.
Todos os Homens do Mundo
Um conto de Viviane Ferreira Santiago
Quando eu vi, a criança já estava na beirada da cama com a cara cheia de sangue e uma gosma esbranquiçada por todo o corpo. Bia, meio morta, meio viva, não disse nada. Acabaram-se os gritos e o choro depois que a menina saiu escorregando pelas suas coxas. A garota, que era quieta feito a mãe, ousou um chorinho breve para indicar que estava viva... Depois, o silêncio.
Bia ficou um tempo imóvel com as pernas abertas. Eu olhei minha irmã por dentro e senti vontade de percorrer o caminho que também existia em mim. Grande, de carnes e sangue brilhantes, preenchendo as pequenas poças.
Seria eu também feita de buracos no solo para acumular choros e fluidos? Quando olhei mais de perto, deu para ver algumas trilhas nas veias inchadas. Cada uma com nome próprio. Nome de homem. Nome de dor. Como se a parte íntima fosse um território invadido. Terra produtiva usurpada, sem nenhum respaldo ao seu legítimo direito à propriedade.
Bia pariu. E eu nem sabia que ela estava esperando neném. Não tinha barriga de mulher prenha. E nem tinha figura de mulher na Bia, que parecia criança nova, apesar de ser a mais velha das irmãs.
A mãe ficou da porta olhando, com sua cria caçula nos braços. Não parecia sentir pena da Bia, que ficou feito bicho, uivando de tanta dor na hora que a criança apontou na beirada dos seus meios.
– Ajuda a Bia, mãe!
– Já nasceu? Olha se é menina.
– É menina.
A mãe foi engolindo o choro e saindo. Sacolejando a caçula nos braços, mesmo a criança já estando dormindo, num sacolejar infinito para que permanecesse calada e não se intrometese na sua fome, sua sede, sua ânsia, no desespero que uma mulher sente no peito ao ver sua outra menina, a mais velha, aos doze anos de idade, parindo.
A mãe olhou e não quis dar, sequer, a mão para Bia em gesto de piedade, esquecendo-se que também já lhe rasgaram por dentro, já lhe dilaceraram, e que dela também já saíram vidas.
Depois que eu enxerguei o universo de dentro da intimidade da Bia, senti pena daquela que nasceu e permaneceu ali, nua, na beirada da cama. Ensanguentada e confusa sobre o que era tudo aquilo que parecia tão pouco. Nasce-se e nem se ganha um olhar ou uma palavra de boas-vindas.
Um nome de mulher para consagrar as dores e incertezas vindouras.
Enrolei no lençol e sacudi a criança quieta. Sacolejei para que ela não se atrevesse a gritar mais alto do que a Bia, que pariu aos doze anos uma menina que tinha a cara do nosso pai, que, dentro da nossa casa, se fazia todos os homens do mundo.
Fim
Um conto de Viviane Ferreira Santiago
Dona Celina morreu.
Ouvi o burburinho vindo da sala. Eles falaram baixinho para que eu e meu irmão não pudéssemos escutar.
Mas criança escuta tudo.
Morreu. Mas quando será que ela volta? Porque já era acertado, de tempos, que iríamos na casa do tio Marcondes no final do ano. E o ano já está por um fio. Na escola, quem passou, já até sabe. Por isso, quase ninguém tem ido ao colégio. Mas eu e meu irmão nunca podemos faltar um dia às aulas, pois o pai precisa muito desse tempo sem a gente por perto para poder resolver coisas de gente adulta.
E agora que a dona Celina morreu, meu pai parece não conseguir segurar nas mãos o tanto de coisa que tem que levar para o escritório, para a cozinha, para o mercado, para o funeral, para o colégio.
Daí fica muita coisa espalhada pelo chão. Estes dias, ele próprio estava deitado altas horas da noite na porta do banheiro, com um cheiro insuportável, que misturava cerveja, vômito, perfume e tristeza.
Dona Celina, antes, bem antes, era mamãe. Depois foi ficando triste, triste, e passou a exigir que todos a chamassem pelo nome.
Já se passaram muitos dias e ainda não estou entendendo direito sobre morrer. Parecia menos ruim quando minha avó dizia que morrer era quase como nascer.
Mas aqui, só ficou um silêncio enorme, que às vezes parece um buraco, e noutras, um engasgo com pão, daqueles... tipo sovado. Fica preso na garganta e a água não faz descer.
"Morrer assim tão jovem", a vizinha repetiu umas três vezes.
Agora não paro de pensar que se existe uma idade certa para morrer, a dona Celina errou feio nas contas.
Como pôde sumir assim? Morrer de uma hora para outra, deixar filhos pequenos, marido cheio de compromissos que não consegue mais resolver... Deixou até os gatos. Quem é capaz de morrer e deixar dois gatos? E ir, sem ao menos se despedir...
Dona Celina foi.
E foi de teimosa, porque três da manhã nem é hora de se morrer.
Um alvoroço tão grande que acordou até os vizinhos. As crianças sendo trancafiadas no quarto para não ouvir... e ouvindo tudo.
Criança ouve tudo.
Ouve o barulho dos gatos de noite no telhado, gritando e fazendo putaria.
Ouve-se também as brigas que a dona Celina tinha com o pai toda vez que ele chegava tarde, bêbado e com cheiro de puta.
Escuta-se o barulho do tapa. Dois, três. Seis tapas. Um chute e o choro.
Cansa-se de ouvir o ruído abafado da boca da dona Celina e do pai vindo do quarto, depois dele confirmar:
– Eu já olhei. Os meninos estão dormindo.
Depois de tudo, quando já se dorme de verdade, uma cadeira cai, o estampido da queda vem do banheiro.
– A dona Celina morreu.
E logo, bem logo, chegam as férias, e não tem visita na casa do tio Marcondes e nem de tio nenhum. Mas tem de novo o pai deitado na entrada do banheiro, chamando por Celina, sem saber dizer quando ela volta.
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