Marina Monteiro - Açougueira
Depois da coletânea de narrativas curtas, "Contos de vista, Pontos de queda" (Editora Patuá, 2021), indicada ao prêmio Açorianos e vencedora do Prêmio Minuano de Literatura em 2022, o mais recente lançamento de Marina Monteiro é um romance que surpreende pela coragem ao explorar os limites de forma e conteúdo da obra, definindo um lugar de fala original para tratar de um tema recorrente em nossa sociedade: a violência contra a mulher. As consequências da misoginia em suas diferentes formas, ou seja, exclusão social, discriminação sexual ou simplesmente hostilidade, são abordadas por meio de uma protagonista que não se enquadra em um padrão feminino usual, criando um efeito de subversão da realidade, somente possível no campo da ficção.
A trama envolve o assassinato e esquartejamento de um homem em uma localidade não nomeada do interior do país. Como não poderia deixar de ser, a principal suspeita no processo é a esposa que exerce a profissão de açougueira, considerada inadequada para uma mulher. A condução da narrativa é feita de forma polifônica, alternando a voz da protagonista com os depoimentos concedidos pelos habitantes da pequena cidade a uma autoridade, referenciada por todos como “doutor” em uma espécie de julgamento. A autora utiliza, portanto, narradores nada confiáveis porque os vizinhos expressam suas opiniões carregadas de preconceito e sexismo, enquanto a mulher que está sendo julgada tende a assumir obviamente uma posição defensiva e parcial.
"Um tempo, fiquei olhando a mãe, aquele corpo magro dela, uma secura. No escuro parece, a gente vê mais. A mãe sempre foi seca? Agora parecia ir sumindo do mundo cada dia mais um pouco. Ou eu que agora via? Me dei conta, quase nunca reparava nela, o corpo dela pra mim era feito pedaço da casa, coisa que se deixa num canto, dessas conhecidas e ao mesmo tempo parecendo coisa nova, nova de estranha, não de novidade. Reparei, não sabia direito a cor do olho dela. Aquele branco saltado no escuro. A mãe encurvada ali, junto. A gente não era gente do olho claro, não tinha como ser, mas eu não sabia se era escuro escuro, escuro claro, se na luz mudava, tem olho escuro que muda, só parece escuro escuro e engana. Olho da mãe de longe era preto, na luz, de perto, talvez fosse outra. Talvez ela toda na luz fosse outra. Não sei. Eu tenho essa lembrança da mãe sempre nos cantos da casa, confundida com as coisas. Foi no escuro que eu vi a mãe. Depois fiquei querendo ver na luz, pra ver a mãe." (p. 18)
Marina Monteiro nos confere a responsabilidade de encontrar uma entre tantas outras possíveis verdades devido à subjetividade e mesmo ambiguidade dos depoimentos. Novas informações vão sendo agregadas em cada uma das quatro partes que compõem o livro, algumas vezes contraditórias. Contudo, o que de fato ocorreu irá depender de uma tomada de posição de cada leitor a partir das suas próprias vivências e convicções morais. De fato, a experiência da leitura incomoda e faz pensar, possibilitando todo o tempo diferentes interpretações, como alerta a protagonista: "E olha, mesmo eu não sabendo tudo, a história nunca é dum só, ainda assim, por conta disso mesmo, é melhor eu contar o todo que eu sei, e já vai ser pouco. [...]"
"De começo a gente era um troço só. Confundido. A carne dele, a minha, a carne dura dele vindo, gostei. Gostava do cheiro dele ficando em mim, apertar a cane dele. Achei, ia ser mais fundo, confesso, não foi todo o esperado. Imaginava depois do beijo no portão fosse ter labareda alta, chama de tocar no céu, acender estrela. Não foi. Foi fogo médio. Baixando de pouco. Baixando. Cada dia mais baixo. Ajuntamento amornou ele, mudou ele. Não sei. O tempo gasta a vida. Foi gastando a gente. O olhar dele foi se virando do avesso, cada dia um pouco mais. O olhar do começo foi se virando do avesso desde o ajuntamento. De uma ponta a outra, cada dia um pouco mais. Até o avesso." (p. 95)
"Açougueira", como no título do romance, sem o artigo que poderia de alguma forma restringir a abrangência e estranheza da obra, é uma aventura da linguagem que se transforma em um potente exercício de literatura ou dramaturgia, uma mulher que rasga um boi inteiro e com isso rasga também as estruturas da sociedade local ao ocupar o seu lugar no mundo, seguindo os conselhos da mãe: "[...] É tudo o contrário do que a gente acha único jeito de ser. Eu já tô na linha. Mais perto. Tu ouve bem o que eu te digo. Tu não precisa chegar na linha. Não precisa ser do mesmo jeito. Não faz como eu. Tu pode antes já. Outra coisa. Tu já leva dentro de ti um jeito, uma força, um vento. Reparo. Um vento que me faltou, tu leva dentro de ti. [...]"
"Espetáculo pra homarada, nessa hora assustada do outro lado da cerca. Riso apagado. Arranco as bolas do bicho. Pra não apodrecer a carne. Tiro dele aquilo que fez dele o que ele era, o reprodutor. Que entrava em todas. O boi velho que sobrou largado no pasto. Carregava as bolas murchas penduradas como uma lembrança da macheza. Arranco as bolas. Ele tava esperando por mim. Pra eu tirar as bolas dele e libertar aquele couro endurecido da vida. Pra apagar o riso da homarada toda. Pra pegar a umidade dos olhos dele e marcar em mim. Seguida tiro as patas dianteiras, abro o boi, um corpo tremido de espasmo que dá na morte ceifando a vida, o corpo do boi fingindo que ainda vive. Abro o boi. As águas vermelhas do boi. Destrincho, separo o todo, desfaço o boi. Parte por parte. Não é mais boi. É coisa despedaçada. Parte por parte. Deixando de ser o que ele era. /Não sei como faço aquilo. Mas faço." (p. 106)
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