Marina Monteiro - Contos de vista, Pontos de queda

Literatura brasileira contemporânea
Marina Monteiro - Contos de vista, Pontos de queda - Editora Patuá - 92 Páginas
Capa e projeto gráfico de Roseli Vaz - Lançamento: 2021.

Quando vivenciamos um acontecimento transformador, podemos eventualmente nos lembrar do clássico de Milton Nascimento: "Sei que nada será como antes, amanhã". Esta é exatamente a sensação em cada um dos contos da mais recente antologia lançada por Marina Monteiro, na qual personagens são confrontados por situações-limite que não admitem retorno, seja na passagem da infância para a adolescência com a descoberta das sensações do póprio corpo em "O último verão" (ler trecho abaixo) ou no excelente "Comigo ninguém pode" que, em oposição, descreve uma senhora na terceira idade, apegada à foto de sua planta na tentativa de manter alguma dignidade, enquanto é encaminhada pelo filho para uma casa de repouso de idosos.

Em outras narrativas, a autora trata de questões de relacionamento além da ditadura hetero, abordando diferentes orientações sexuais como no poético "Existe sempre o mar rompendo gestos" que lança mão do abismo e do movimento do mar em contraponto ao diálogo das duas personagens em crise: "eu permaneço com o mar enquanto falo com ela, antevendo a aparente inércia que se derramou sobre a imensidão das águas se transformar, puxando lá do fundo o movimento, o retorno da força investida contra as pedras que ainda soluçam". Já em "Eu vou pra sala" uma visão mais direta sobre o rompimento entre os personagens: "Vem pra sala. Grita. Me Cheira. Me sacode. Derruba essa estante. Acaba com esse desejo de serenidade, com essa mania de ioga, com essa brancura em tudo. Vem pra sala e se suja. Implora. Diz que me ama. Reage."

"O Pedro quer ficar contigo. Ficar? É! Por dentro era um comprimido daqueles que a mãe jogava na água às vezes. Uma mistura de quente com frio, cócegas com dor de barriga, seco com molhado. Pequenas explosões de pó e água que trabalhavam para alcançar a mistura. Pequenas explosões que provocavam coceira no interior do corpo. Por fora não disfarçava muito bem a ebulição das coisas. Montou na bicicleta e voou para casa sem nem se despedir de ninguém. Tomou banho mais cedo que o normal, comeu pastel frito em casa e depois foi pro quarto. A mãe perguntou se estava tudo bem. Ela respondeu um aham meio inaudível e subiu no escuro do beliche, ficar sozinha enquanto o irmão mais novo ainda brincava no quintal. O Pedro quer ficar contigo." - Trecho de "O último verão" (p. 18)

Marina Monteiro tem o domínio da técnica narrativa e, sempre com um texto forte e poético, conquista o leitor desde o início, com personagens em queda, vivenciando a violência urbana, inclusive policial, muito decorrente das desigualdades sociais que assolam o país. É o caso de "Um devir pássaro" (ler trecho abaixo) no qual o protagonista, simplesmente Zé, teima em "curtir os pontinhos de cores em contraste com o azul sem nuvens", apreciando "os pássaros homens que plainavam sobre a cidade", e acaba perdendo a hora de ir para o asfalto com a caixa de amendoins, enquanto a mãe precisa limpar a casa de família rica, sem carteira assinada, uma história como tantas outras do nosso cotidiano, mas que ganha novos contornos com o olhar da autora.

"Zé olhou para sua pipa gigante, a maior que já tinha feito na vida. A mais bonita também. Uma cópia bem próxima das asas que os homens pássaros vestiam no céu da praia. Segurou a pipa bem acima da cabeça, com as duas mãos erguidas altas, de tocar o céu. Óculos escuros e peito cheio de ar, à espera do vento certo, que desse o impulso perfeito, de manter a pipa no ar, sempre subindo. Sempre subindo. Alguns passos para trás, o tronco no ângulo calculado, o corpo e a pipa precisavam ser um só. Na hora em que a rajada de vento lambeu os cabelos com desejos de bagunçar, Zé correu, correu com toda a velocidade e na beira daquele mundo permitiu que o corpo ficasse leve, soltando o fio, aumentando a distância entre a terra. Deixar ir em direção ao céu. Deixar ir. Confiar na engenharia perfeita de seu projeto. Sem brigar com o vento." - Trecho de "Um devir pássaro" (p. 43)

A sensível apresentação de Carola Saavedra na orelha do livro resume muito bem o conjunto de contos, melhor do que qualquer resenha: "[...] Sim, nas narrativas há sempre um ato, um acontecimento que nos transforma, que estabelece uma linha, um limite entre o antes e o depois. Há como voltar? Nunca há. Porque há certas coisas na vida que nos roubam para sempre quem éramos, e precisamos nos reconfigurar para seguir em frente. Marina vai tecendo com grande talento e delicadeza uma narrativa da queda, uma poesia das reticências, do que não está explicito, uma vida das entrelinhas. Haverá um depois, sim, mas não haverá retorno, porque, por mais que insistamos, é impossível ignorar o que sabemos."

"Naquele dia, quando saiu para trabalhar, você fez o menor barulho possível quando passou do quarto para a cozinha. Não queria que eu acordasse. O nosso sofá era bonito, mas zero conforto. Eu não dormia muito bem nele. Nunca te contei isso. Eu estava começando a gostar de ver você fazendo aquele contorcionismo todo para se arrumar e sair sem muito ruído. Nas últimas semanas você se atrasava sempre, e era engraçado. Ficava enfiada com a cara naquele celular, digitando mensagens longuíssimas que no fim sempre te faziam sorrir. O mesmo sorriso que me conquistou há dez anos. Eu gostava de ver também você percebendo que não tinha tempo pra lavar a louça do café. Você olhava para o meu corpo dormindo no sofá e fazia uma cara de desespero. Acabava por deixar a louça para mim. Eu lavava com prazer. Isso fazia oom que estivéssemos próximas, mesmo você trabalhando. Nas noites que você acabava não voltando para dormir em casa, eu dormia no sofá mesmo assim e pela manhã eu fingia que você estava lá, acordando e fazendo aquela sua cena." - Trecho de "A foto do seu sovaco" (p. 64-5)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre a autora: Marina Monteiro nasceu em Porto Alegre no ano de 1982, é também manezinha da ilha e carioca. Além de escritora é atriz, dramaturgista, arte-educadora e produtora cultural. Formada em teatro pela UDESC e formanda em filosofia pela UFRJ. É facilitadora em oficinas de escrita criativa e orienta projetos literários. Tem textos publicados em zines, revistas e antologias. É autora do livro "Comendo borboletas azuis", publicado pela Multifoco em 2010 e do livro de contos "Em nossa cidade amarelinha era sapata", publicado pela Patuá em 2019. Em 2020 o livro foi vencedor do 18º Prêmio AGES, da Associação Gaúcha de Escritores, na categoria narrativa curta.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Contos de vista, Pontos de queda de Marina Monteiro

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