Carlos Nejar - Contos de uma civilização envergonhada
O título do mais recente lançamento do escritor, poeta, tradutor e imortal Carlos Nejar não poderia ser mais sugestivo para resumir a nossa época. Afinal, não há sentimento mais adequado do que a vergonha para definir a nossa perplexidade diante de uma civilização que não aprende com os próprios erros ao longo da história, seja por meio da destruição do planeta e seus recursos naturais ou, até mesmo, da autodestruição em guerras recorrentes, cada vez mais absurdas, como a recente invasão da Ucrânia pela Rússia que acompanhamos em tempo real.
Os contos são de curta extensão, mas desafiadores em termos de construção literária e simbolismos, influência de autores como Franz Kafka e Jorge Luis Borges. Percebemos também ecos da experiência de Carlos Nejar como poeta, com uma prosa que incorpora o lirismo e o ritmo da poesia, como bem demonstrado no conto "Civilização": "Não perdoo esta civilização porque me dá em troca da infância, o terror. [...] Não perdoo esta civilização que destrói e não conserva, ou conserva, destruindo." Ler o conto completo em destaque abaixo.
"Não perdoo esta civilização porque me dá em troca da infância, o terror. E me dá em troca da realidade, nada. Salvo um gemido de quem ainda não aprendeu o tema da leitura em casa. Com olhos que ficaram verdes e não querem amadurecer. Não poupo esta civilização, por não ter mais pernas para nadar no rio. Se ela afundar, nadarei de uma palavra à outra. Sustentando agora uma civilização da alma que carece de corpo. Acabo morrendo, de tanto ver. E acabo vendo, de tanto morrer. Havendo falha insanável nesta civilização: o que é quadrado não fica redondo, nem o redondo é quadrado. Todas as bestas se uniram contra a inteligência e a inteligência toda contra as bestas. E para resistir, não há que ser nem besta, nem inteligente. Talvez inteligentemente besta, formando uma nova geração de homúnculos. E como já morri, apenas posso prever os sintomas. Mas os sintomas podem me prever? Não perdoo esta civilização que destrói e não conserva, ou conserva, destruindo. E o epitáfio de alguns túmulos há de ser: Devia ter melhor pensado nisso! E é inútil porque esta civilização não quer pensar. E se pensasse, não resistiria." - Civilização (p. 95)
Já em "Cândida", o autor parece compartilhar de uma certeza que carrego comigo há alguns anos, a certeza de que o cão é uma evolução do ser humano, tão bem descrita no trecho: "Quando contemplava minha cachorra Cândida, terna, com mancha escarlate no focinho e os olhos de avelã e tão remotos que pareciam emanar de regiões desconhecidas, não tenho dúvida da alma. E chego a defender a teoria de que ela se aloja atrás da aparência canina, como ali preexiste a piedade que já se extinguiu no coração humano. De fato, este conto me fez lembrar da citação de um grande contista, Tchekhov: "Que grandes pessoas são os cães!".
"O fato de os cães falarem – é discutível para alguns – para outros, como eu, não. Entendi muitas vezes a fala dos cães entre si e comigo. E esse entendimento se prende a fatores explicáveis. Vindo ao encontro dos que pensam que eles têm alguma espécie de alma. Quando contemplava minha cachorra Cândida, terna, com mancha escarlate no focinho e os olhos de avelã e tão remotos que pareciam emanar de regiões desconhecidas, não tenho dúvida da alma. E chego a defender a teoria de que ela se aloja atrás da aparência canina, como ali preexiste a piedade que já se extinguiu no coração humano. Afeiçoara-me àquele ser de pelo aveludado que também me amava, provando que o amor ultrapassa todos os hemisférios da natureza e latitude. Uma manhã descobri que Cândida criara no quintal, detrás do altivo castanheiro, um esconderijo cavado aos poucos, com suas científicas patas. Isso digo, porque ela usava insólita e paciente técnica de perfurar a terra. Seguia normas matemáticas, por instinto. E o que é instinto, carece de raciocínio. O instinto tem a inevitabilidade da espécie. [...]" - Cândida (p. 131)
O que dizer então de "Opção desesperada", uma parábola que reproduz uma situação comum no Brasil atual, um país no qual existem mais escritores do que leitores, onde são publicadas obras que não serão lidas: "E escreviam para ninguém, para nada. TInham apenas que contar com o futuro que criaria os leitores. Não adiantava talento ou gênio, porque sem ter quem adquirisse os livros, avaliasse, lesse e admirasse suas obras, para que serviriam?". Contos de uma civilização envergonhada é um livro que mostra Carlos Nejar em sua melhor forma e nos faz refletir sobre o nosso tempo, provando que a literatura pode não mudar o mundo, mas sempre oferece uma espécie de alívio, esperança de que a civilização possa evoluir algum dia.
"Só os escritores liam os escritores naquele País e o Rei, num momento de loucura, baixou um Decreto determinando que todos os súditos deveriam optar entre serem escritores ou leitores – e nenhum édito real poderia voltar atrás. Ora, todos resolveram escolher a primeira opção, até por ascensão social ou por obediência às vozes que procediam da infância. E como os escritores ainda não existem sem leitores, desesperaram-se por não haver mais sentido na vida. Porém, a vida é que agora lhes dava sentido para persistirem escrevendo. E escreviam para ninguém, para nada. TInham apenas que contar com o futuro que criaria os leitores. Não adiantava talento ou gênio, porque sem ter quem adquirisse os livros, avaliasse, lesse e admirasse suas obras, para que serviriam? Talvez para as bibliotecas, não muitas. Quem as frequentava assiduamente eram os ratos, por sinal, operosos, aplicados. E havia cada vez mais livros. Nenhum leitor. E os escritores se cansaram de escrever para ninguém: juntaram os livros todos numa fogueira e atearam fogo. O que não é consumido pelos olhos, que o seja pela chama. E a fogueira não conseguiu queimá-los: eram indestrutíveis, eternos. Independentes dos autores, continuariam solitários. Até quando? Quando cessarem livros, cessarem os autores, cessar a escrita sobre a terra, uma simples letra, por descuido, pode a tudo recomeçar." - Opção desesperada (p. 194)
Sobre o autor: Carlos Nejar é um poeta, ficcionista, tradutor e crítico literário brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras. Nascido em Porto Alegre, em 1939, é considerado um dos mais importantes poetas da sua geração. Nejar, também chamado de "o poeta do pampa brasileiro", destaca-se pela riqueza de vocabulário e pela utilização das aliterações, que tornam seus versos musicais. Lançou seu primeiro livro, Sélesis, em 1960. Como tradutor traduziu autores como Pablo Neruda. O critico literário Ronald Augusto o colocou como um dos três melhores poetas do seu estado no final dos anos de 1970, juntamente com Mário Quintana e Heitor Saldanha.
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