Carine Mendes - Ponto Cego
Carine Mendes nos apresenta uma obra de caráter experimental que desafia o leitor a lidar com o próprio esgotamento da palavra, explorando a prosa e a poesia, assim como recursos gráficos e ilustrações. O romance, se é que podemos chamar assim, tem como base as múltiplas identidades de um ser em formação, a partir de alguns poucos personagens que nunca se definem completamente: Luíza, Luís e um misterioso narrador onisciente e onipresente, isolados em um vasto espaço negro, chamado de Lugar Nenhum, o ponto cego do mundo, uma região na qual os personagens estão todo o tempo protegidos pela escuridão mas, por outro lado, forçados a enfrentar os seus próprios conflitos.
O livro de inspiração beckettiana em sua complexidade de interpretações, é dividido em quatro partes: fusão, espelhose, difração e desespelho, todas relacionadas à interação entre as personagens, o narrador e o estranho lugar onde convivem. Luíza representa as ambiguidades de uma maternidade que extrapola os conceitos tradicionais, de certa forma romantizados, principalmente do ponto de vista da mãe. Já Luís é a própria metáfora do crescimento e das dificuldades na formação de uma identidade. No espelhamento e na confusão intencional entre os personagens reside a chave da narrativa.
"Durante dias Luíza esmiuçou aquele pequeno lugar de mundo que lhe foi designado. Era difícil dizer o prazer e o medo mobilizados nessa investigação tátil. Era como se Lugar Nenhum fosse um corpo e Luíza fosse o sangue pulsando em todo lugar, invadindo, apropriando-se. Ela entrou e saiu por todas as reentrâncias, por todas as superfícies, por todos os vazios, o único lugar em que ela não conseguiu entrar foi o quarto ao final do corredor. Aquele cômodo a espreitava e Luíza podia sentir uma espécie de perigo emanando pelas frestas da porta, talvez fosse impressão ou apenas curiosidade. No entanto, mesmo ali onde tudo podia ser tocado e mapeado existia um lugar impenetrável e isso a deixava em estado de angústia crônica, a qualquer momento algo desconhecido poderia simplesmente escancarar a porta e implodir seu mundo incorruptível. Era algo com o qual Luíza teria que conviver por enquanto, ela sabia que em algum momento descobriria o que havia lá dentro, ainda que desejasse jamais ter descoberto." (p. 32)
É preciso se deixar levar pela beleza da prosa poética da autora nessa narrativa não linear, na qual "começo, meio e fim se tornam imprecisos como sempre foram e nós perdemos as ilusões trazidas pelo dia de que tudo seja assim concreto, linear, transparente. A noite pesa, pesa tanto que só as custas de muito se diluir ela nos é possível e por mais que luz não haja, há sempre a escolha do descontorno e do entregar-se à fluidez." Afinal, a literatura não deve obedecer a uma linearidade que é impossível de ser encontrada na vida real, sempre fragmentada e confusa.
Oh espelho!
Promessa vítrea
da identidade fragmentada,
espelho
a imobilidade aquosa
de uma essência etérea?
Responde-me,
pelos teus cortes!
Pronuncia
alguma sentença temporária
na certeza dessa imagem ilusória
que me dê
angústia, tormentas, perguntas.
O teu silêncio impassível
erige contornos entre nós.
Não te dás contas disso?
Preferiria antes a solidez despedaçada
à tua fluida indiferença.
Se assim o queres,
não me atormentes mais
com a língua muda
dos teus reflexos,
nem me venha obtuso
alardear uma falsa polidez.
Parto-te.
Partes-me.
Partimo-nos.
Adeus.
Seja por meio da prosa ou da poesia, o livro exige a participação do leitor, como bem resumido pela própria Carine Mendes na apresentação: "o leitor é convidado a reunir, significar e subverter a linearidade textual para (des)construir peça por peça", seguindo este caminho, a obra surpreende pela coragem em propor com a sua "prosa imagem" novas alternativas estéticas para a literatura contemporânea no esforço sempre renovado de contar boas histórias.
"Luís andava em cismas e segredos a esgueirar-se pelas quinas, não queria ser ouvido ou surpreendido, ao menos não mais do que andava ele mesmo a se surpreender, estava agora pelos 10 buliçosos anos. Sentava-se muitas vezes ao fundo do abrigo e perscrutava aquela excrescência a manifestar-se por entre as pernas. Estava curioso por experimentar as sensações concentradas, vindas não se sabe de que adjacências. Acordava e sentia a elevação, atiçada antes mesmo dos saberes e a tomar-se de vontades próprias. Tocava, manipulava, despertava de maneiras outras, intensas e únicas. Seus pensamentos convergiam em uníssono para as sensações de de atrito, intumescência e contato com o jato aguado. Pegava o esguicho nas mãos e pela primeira vez na vida sentia algo muito próximo de uma repulsa. Tentava se controlar e se satisfazer pela perícia, mas esta só fazia o favor de aumentar-lhe as ânsias. [...]" (p. 89)
Sobre a autora: Carine Mendes nasceu em Maceió/AL, local onde atualmente reside. A autora é mestre e doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo e atua como professora de Psicologia, psicoterapeuta e escritora. Um primeiro poema aos 12 anos abriu-lhe as portas de um mundo a ser explorado a partir da letra e da palavra-sentimento. No entanto, seu percurso de escrita sempre foi permeado pelos desafios de estimular, separar e conciliar a escrita acadêmica e literária. Nesse embate entre diferentes linguagens e diferentes palavras-efeito, optou-se por sustentar a escrita sobretudo em todavia, o que transforma Ponto Cego no reflexo da busca incessante por reinvenção.
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