Javier Marías - Assim começa o mal

Literatura espanhola
Javier Marías - Assim começa o mal - Editora Companhia das Letras - 520 páginas - tradução de Eduardo Brandão - Lançamento no Brasil: 29/09/2015.

Javier Marías está de volta com a sua prosa caudalosa e as deliciosas e longas frases que se ramificam em múltiplas digressões, estilo que me faz lembrar do saudoso José Saramago. Este romance é ambientado na Madri dos anos oitenta, após a longa era de 36 anos do "Generalíssimo" Franco no poder, período que ficou conhecido na história como ditadura franquista, iniciado em 1939, no fim da Guerra Civil, até a sua morte em 1975. Um período total de 36 anos, portanto, que deixou marcas profundas na sociedade espanhola e provocou um fenômeno típico nos governos de redemocratização (que conhecemos muito bem), a convivência tácita entre as vítimas e os carrascos do antigo regime, sendo que, em alguns casos, os lobos se transformam em cordeiros e o medo de novas arbitrariedades faz com que as testemuhas se calem.
"Naqueles dias, naqueles anos, começava-se a contar em particular coisas distantes que muitos espanhóis tinham se visto obrigados a calar em público por décadas a fio e mal haviam sussurrado de quando em quando em família, e com intervalos de silêncio cada vez maiores, como se além de mantê-las proibidas as houvessem procurado confinar na esfera dos pesadelos, e que assim se perdessem na tolerável bruma do que poderia ou não ter ocorrido. Isso acontece com o que envergonha, com as humilhações sofridas e com os acatamentos impostos. Ninguém gostava de rememorar que tinha sido vencido ou que tinha sido uma vítima, que foram cometidas injustiças ou atos de crueldade com ele e com os seus, que tivera de se render e ser reconhecido pela outra parte para sobreviver, que tinha delatado companheiros para obter as graças do novo poder sanhudo e perseguidor incansável dos derrotados, ou que tinha sido enterrado em vida tratando de chamar o mínimo possível a atenção, que havia levado uma existência acovardada e submissa e tinha se dobrado às exigências dementes do regime vencedor; que, apesar do dano causado, na sua própria pele ou na de seus pais ou irmãos, havia tentado abraçá-lo, exaltá-lo, fazer parte de suas estruturas e medrar sob seu escudo. Hoje se contam numerosas histórias fictícias de irremíveis e de resistentes passivos ou ativos, mas o certo é que a maioria dos verdadeiros — não muitos, e não duraram — foi fuzilada ou encarcerada nos primeiros anos depois da guerra, ou se exilou, ou foi expurgada e sofreu represálias e foi impedida de exercer suas profissões: houve homens de idade ou maduros que passaram o resto dos dias vendo como suas viúvas e filhas saíam para buscar o que comer — suas mulheres já como viúvas —, enquanto eles, mal barbeados, pré-cadavéricos — engenheiros, médicos, advogados, arquitetos, catedráticos, cientistas, um ou outro militar leal que se salvou —, olhavam pela janela e se esforçavam para não pensar. Ao cabo de pouco tempo o grosso da população foi entusiasticamente franquista, ou o foi mansamente, por temor. Muitos dos que haviam detestado e padecido suas forças foram se convencendo de que era melhor assim e de que tinham vivido e inclusive combatido no erro. Nunca se viu tanta virada de casaca, uma virada maciça. A Guerra Civil terminou em 1939 e, diga-se o que for agora, nem nos anos 40 nem nos 50, nem por conseguinte nos 60 mais brandos, nem quase tampouco nos 70 até a morte do ditador, as pessoas ansiavam por contar sua versão, quero dizer, a que teriam sido impedidas de contar." (pág. 36)
Na época em que ocorre a narrativa deste romance, Madri passa por uma fase libertária pós-ditadura, e o protagonista Juan de Vere, com apenas vinte e três anos, é contratado para exercer a função de secretário particular de Eduardo Muriel, um conceituado diretor de cinema, passando a conviver intimamente com a sua família. Tanta intimidade faz com que o jovem Juan de Vere presencie o infeliz cotidiano de seu patrão com a esposa Beatriz Noguera que é desprezada e humilhada sem motivos aparentes. Apesar do casal manter as aparências, na realidade vivem uma irremediável separação. Também como decorrência da crescente proximidade com seu empregador, Eduardo Muriel, este o encarrega de investigar um antigo amigo, o dr. Jorge Van Vechten, conhecido por ter tido uma carreira rápida e bem sucedida durante o regime franquista. Javier Marías consegue manter o segredo que envolve os personagens até o final do romance, mas o leitor logo percebe que a chave para entender o presente está relacionada com fatos ocorridos durante o período negro da história espanhola que todos procuram esquecer, em grande parte por não conseguirem perdoar. O autor comentou, em uma entrevista recente, sobre a importância do perdão e explicou que muitas vezes ele próprio ficou em dúvida se o melhor seria avançar e esquecer o passado ou recordar permanentemente os agravos e crimes. No trecho abaixo, uma descrição da atmosfera dos anos oitenta e a negativa dos antigos representantes do regime em "prestar contas" para a sociedade.
"Agora as coisas haviam mudado um pouco nesse sentido, no de contar; não muito, na realidade. Governava Adolfo Suárez, o primeiro presidente saído de eleições depois de um período de quarenta anos, Franco estava morto havia quatro ou cinco anos. Por um lado, logo havia sido desprezado e visto como um ser antediluviano, aos seis meses a gente mais dada a refletir ficava pasma com que tivesse transcorrido tão pouco tempo, porque se tinha a sensação de que seu desaparecimento havia sido há séculos. Não era apenas uma parte do país que a tinha ansiado e esperado e antecipado tanto, e que em muitos aspectos — nos possíveis — a sociedade havia começado a atuar desde muito antes como se já tivesse ocorrido, mas que com incrível velocidade se fez patente, até para seus partidários, o clamoroso anacronismo que era e o quanto sobravam ele, sua ditadura e sua Igreja, à qual havia entregado poder e benefícios ilimitados. Por outro lado, no entanto, sabia-se que seu regime tinha se retirado de maneira inverossímil sem reclamar (na época se disse que havia feito haraquiri), obedecendo à vontade do rei, e que por isso a democracia nos havia sido outorgada (...) Uma das condições para aquela outorga e aquele haraquiri tão surpreendentes tinha sido, numa frase: 'Ninguém peça a ninguém para prestar contas'. Nem dos já muito distantes desmandos e crimes da guerra, cometidos por ambos os lados no front e na retaguarda, nem dos infinitamente mais próximos da ditadura, cometidos por um só em sua imensa retaguarda punitiva e rancorosa ao longo de trinta e seis anos de carta branca para seus esbirros e de mortificação e silêncio para os demais." (págs. 39 e 40)
Ficção se confunde com realidade e o cinema, como em outros livros do autor, é um dos elementos presentes na narrativa, desta vez com a inserção de atores reais (geralmente de obscuras produções do tipo "classe B") na trama do romance, tais como Jack Palance, Shirley Eaton e Herbert Lom em uma homenagem clara de Javier Marías à sétima arte. Algumas cenas do romance são antológicas e demonstram, de certa forma, o gosto cinéfilo de Marías, principalmente naquelas passagens em que De Vere "espiona" os demais personagens e, por exemplo, passa a seguir por conta própria a esposa de seu patrão em uma espiral crescente de desejo, passando de observador passivo a agente dos acontecimentos.  

"Assim começa o mal" não é o melhor romance de Marías, mas foi escolhido pelos críticos do caderno literário Babelia do jornal El País como o melhor livro lançado na Espanha (prosa e poesia) em 2014, o que não é pouca coisa, e certamente ficará marcado como um dos melhores lançamentos traduzidos no Brasil em 2015. A capa da edição brasileira, produzida por Raul Loureiro, foi um acerto em cheio da Companhia das Letras, a imagem da pintura de Tamara de Lempicka é elegante e sensual, como o estilo de Javier Marías.

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