Sobre o livro das mil e uma noites
Um clássico da literatura mundial, "O livro das mil e uma noites" compreende uma variedade de contos populares e fábulas de cunho moral do Oriente Médio e do Sul da Ásia, compiladas em língua árabe desde o século IX e reunidos em uma única história, que é narrada por uma das mais fascinantes protagonistas já imaginadas, a inteligente Scheherazade. Esta postagem utilizou como base as minhas notas sobre um dos módulos do curso "Masterpieces of World Literature" de David Damrosch e Martin Puchner, professores da Universidade de Harvard, disponível online. Este e outros cursos similares, e também de outras áreas, podem ser acessados gratuitamente neste link.
Como sabemos, Scheherazade devia contar novas histórias todas as noites, interrompendo cada conto ao amanhecer para continuá-lo na noite seguinte, o que a manteria viva ao longo de muito tempo. No entanto, ela tinha outro objetivo mais importante, porque caso ela simplesmente mantivesse a atenção do rei noite após noite, ela ainda ficaria presa para sempre. Assim, havia uma segunda tarefa que consistia em reeducar o rei que havia ficado louco após ter descoberto as infidelidades de sua esposa. Ele havia jurado matar todas as mulheres depois de passar apenas uma noite com cada uma. Isso, é claro, levaria o reino à destruição. Logo, Scheherazade precisou salvar não só a si mesma e suas companheiras mulheres, mas realmente, todo o reino, ensinando ao rei como ser rei novamente.
Desta forma, com a loucura do rei, havia uma crise política sem precedentes que precisava ser resolvida e isto foi conseguido por meio do lento processo de contar histórias, sempre presenciadas por sua irmã mais jovem Dunyazade, histórias que, no final, giravam em torno de decisões de reis justos e boa governança. Um personagem importante nesses contos ou fábulas era o famoso Califa de Bagdá, Harun al-Rashid, que caracterizava o núcleo árabe da coleção. Outros contos vêm de outras partes do mundo como a Pérsia e a Índia. Uma informação importante sobre Harun al-Rashid é que ele criou a primeira fábrica de papel no mundo árabe, originalmente importado da China, via Estrada da Seda.
O uso do papel transformou a literatura no mundo árabe porque era muito mais fácil de ser produzido do que o papiro ou o pergaminho. Portanto, reduziu o custo de produção da literatura e isto foi perfeito para o "livro das mil e uma noites" que não era considerado como alta literatura e sim uma forma mais popular, orientada para as pessoas da cidade e comerciantes, normalmente em destaque em suas páginas. Mesmo protagonizando alguns reis característicos como Harun al-Rashid, normalmente as fábulas se referiam a pessoas comuns. Este tipo de literatura conseguiu prosperar apenas quando o custo de produção e, portanto, as barreiras de acesso, foram reduzidas com a introdução do papel.
No ocidente, a primeira importante tradução do "livro das mil e uma noites" foi de Antoine Galland (1646-1715), orientalista e arqueólogo francês. Sua versão foi publicada em doze volumes entre 1704 e 1717. O criativo Antoine Galland foi mais do que um tradutor, tendo incluído em sua versão alguns dos contos mais famosos. Por exemplo, não há manuscritos árabes de Aladim e Ali Baba. Isso levou alguns estudiosos a concluir que Galland os inventou pessoalmente e as versões em árabe são apenas versões posteriores de seu original francês. Na verdade, a fonte de Galland, segundo o próprio, foi um contador de histórias chamado Hanna Diab, um maronita de Alepo, que narrou-lhe contos como o de "Aladim e a Lâmpada Maravilhosa" e o de "Ali Babá e os Quarenta Ladrões" que não constavam do conjunto original. O fato é que as histórias ganharam popularidade em toda a Europa, gerando outras traduções e adaptações.
A primeira tradução para o inglês do "livro das mil e uma noites" foi publicada em 1840, em três volumes, por Edward William Lane (1801-1876), uma versão claramente censurada pelo próprio tradutor que compartilhava a visão usual da "moralidade vitoriana" do século XIX. Esta versão era, portanto mais centrada nas práticas culturais e questões sociais. Posteriormente, a versão de Sir Richard Francis Burton (1821-1890), foi bem mais realista com a inserção de elementos eróticos e práticas e costumes sexuais do oriente, sempre uma fixação para os europeus (ler uma versão disponível aqui).
Um fato interessante a ser destacado sobre a questão de Scheherazade como heroína feminista, em uma sociedade tipicamente patriarcal, é que ela tem sido proclamada por gerações, mesmo durante séculos, como uma salvadora das mulheres, o que não deixa de ser uma avaliação justa de seu valor. Mas curiosamente, o que ela faz é retornar o mundo para o seu status quo. Ela não é revolucionária no sentido das feministas tradicionais da história, o que ela faz realmente é utilizar os seus dons narrativos como uma espécie de terapia para o rei. Ela o salva de sua própria loucura.
Contudo, talvez o ponto mais interessante sobre o "livro das mil e uma noites" é que o mesmo não seja considerado até hoje como alta literatura no próprio mundo árabe. De fato, os estudiosos queixam-se do que eles chamam de "Síndrome das mil e uma noites", com o significado da sobre-representação e valorização do livro e suas diversas adaptações no mundo ocidental (inclusive no cinema) sobre a verdadeira cultura árabe. Esta valorização tende a somente reconhecer os trabalhos literários que representem esta tendência ou preferência pelo fantástico ou sobrenatural.
Como sabemos, Scheherazade devia contar novas histórias todas as noites, interrompendo cada conto ao amanhecer para continuá-lo na noite seguinte, o que a manteria viva ao longo de muito tempo. No entanto, ela tinha outro objetivo mais importante, porque caso ela simplesmente mantivesse a atenção do rei noite após noite, ela ainda ficaria presa para sempre. Assim, havia uma segunda tarefa que consistia em reeducar o rei que havia ficado louco após ter descoberto as infidelidades de sua esposa. Ele havia jurado matar todas as mulheres depois de passar apenas uma noite com cada uma. Isso, é claro, levaria o reino à destruição. Logo, Scheherazade precisou salvar não só a si mesma e suas companheiras mulheres, mas realmente, todo o reino, ensinando ao rei como ser rei novamente.
Desta forma, com a loucura do rei, havia uma crise política sem precedentes que precisava ser resolvida e isto foi conseguido por meio do lento processo de contar histórias, sempre presenciadas por sua irmã mais jovem Dunyazade, histórias que, no final, giravam em torno de decisões de reis justos e boa governança. Um personagem importante nesses contos ou fábulas era o famoso Califa de Bagdá, Harun al-Rashid, que caracterizava o núcleo árabe da coleção. Outros contos vêm de outras partes do mundo como a Pérsia e a Índia. Uma informação importante sobre Harun al-Rashid é que ele criou a primeira fábrica de papel no mundo árabe, originalmente importado da China, via Estrada da Seda.
O uso do papel transformou a literatura no mundo árabe porque era muito mais fácil de ser produzido do que o papiro ou o pergaminho. Portanto, reduziu o custo de produção da literatura e isto foi perfeito para o "livro das mil e uma noites" que não era considerado como alta literatura e sim uma forma mais popular, orientada para as pessoas da cidade e comerciantes, normalmente em destaque em suas páginas. Mesmo protagonizando alguns reis característicos como Harun al-Rashid, normalmente as fábulas se referiam a pessoas comuns. Este tipo de literatura conseguiu prosperar apenas quando o custo de produção e, portanto, as barreiras de acesso, foram reduzidas com a introdução do papel.
No ocidente, a primeira importante tradução do "livro das mil e uma noites" foi de Antoine Galland (1646-1715), orientalista e arqueólogo francês. Sua versão foi publicada em doze volumes entre 1704 e 1717. O criativo Antoine Galland foi mais do que um tradutor, tendo incluído em sua versão alguns dos contos mais famosos. Por exemplo, não há manuscritos árabes de Aladim e Ali Baba. Isso levou alguns estudiosos a concluir que Galland os inventou pessoalmente e as versões em árabe são apenas versões posteriores de seu original francês. Na verdade, a fonte de Galland, segundo o próprio, foi um contador de histórias chamado Hanna Diab, um maronita de Alepo, que narrou-lhe contos como o de "Aladim e a Lâmpada Maravilhosa" e o de "Ali Babá e os Quarenta Ladrões" que não constavam do conjunto original. O fato é que as histórias ganharam popularidade em toda a Europa, gerando outras traduções e adaptações.
A primeira tradução para o inglês do "livro das mil e uma noites" foi publicada em 1840, em três volumes, por Edward William Lane (1801-1876), uma versão claramente censurada pelo próprio tradutor que compartilhava a visão usual da "moralidade vitoriana" do século XIX. Esta versão era, portanto mais centrada nas práticas culturais e questões sociais. Posteriormente, a versão de Sir Richard Francis Burton (1821-1890), foi bem mais realista com a inserção de elementos eróticos e práticas e costumes sexuais do oriente, sempre uma fixação para os europeus (ler uma versão disponível aqui).
Um fato interessante a ser destacado sobre a questão de Scheherazade como heroína feminista, em uma sociedade tipicamente patriarcal, é que ela tem sido proclamada por gerações, mesmo durante séculos, como uma salvadora das mulheres, o que não deixa de ser uma avaliação justa de seu valor. Mas curiosamente, o que ela faz é retornar o mundo para o seu status quo. Ela não é revolucionária no sentido das feministas tradicionais da história, o que ela faz realmente é utilizar os seus dons narrativos como uma espécie de terapia para o rei. Ela o salva de sua própria loucura.
Contudo, talvez o ponto mais interessante sobre o "livro das mil e uma noites" é que o mesmo não seja considerado até hoje como alta literatura no próprio mundo árabe. De fato, os estudiosos queixam-se do que eles chamam de "Síndrome das mil e uma noites", com o significado da sobre-representação e valorização do livro e suas diversas adaptações no mundo ocidental (inclusive no cinema) sobre a verdadeira cultura árabe. Esta valorização tende a somente reconhecer os trabalhos literários que representem esta tendência ou preferência pelo fantástico ou sobrenatural.
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