Um conto para Sylvia Plath
Detalhe da ilustração "El Paraíso Perdido" de Pablo Auladell |
Na manhã de 11 de fevereiro de 1963, durante um dos piores invernos ingleses já registrados, a poeta americana Sylvia Plath serviu leite para seus dois filhos, Frieda (3 anos) e Nicholas (1 ano), quebrou a vidraça da janela para garantir a ventilação que salvaria a vida das crianças e trancou, vedando cuidadosamente, a porta do quarto. Após estas providências, foi até a cozinha e abriu a válvula de gás, colocando sua cabeça dentro do forno, não era a primeira vez que ela tentava o suicido, mas desta vez foi bem sucedida. Sylvia Plath tinha apenas 31 anos.
Os seus principais poemas foram escritos nos últimos meses de vida, após a difícil e conturbada separação do marido e poeta inglês Ted Hughes, em 1962. Estes poemas foram publicados no livro “Ariel’ dois anos após sua morte. Ela escreveu também um romance autobiográfico chamado "A Redoma de Cristal" onde a sua personagem Esther Greenwood, uma jovem inteligente e talentosa, não consegue vencer as crises de depressão que enfrenta devido à sua inadaptação à futilidade da sociedade americana dos anos 1950 e o fracasso nos relacionamentos com os homens, as amigas e a própria mãe.
A revista de literatura Gueto publicou um conto de Regina Taccola inspirado nos últimos momentos de Sylvia Plath que me chamou muito a atenção. Um belo exercício de recriação da vida pela arte e uma chance dos amantes da atormentada poeta conhecerem um novo final para essa história, imperdível.
A mensagem
(conto de Regina Taccola)
Para Sylvia Plath, in memoriam.
Maria Eva põe a filha de seis anos na cama.
— Conta uma história, mãe?
Maria Eva acaricia a cabeça loura.
— Vou contar. Fecha os olhos.
Usando um tom bem baixinho começa.
Suave, sua voz é hipnótica.
A menina ouve quieta.
Não entende algumas palavras, mas tanto faz.
O importante é sentir a mãe presente.
Maeve morava numa bela casa. Em vez de telhado essa casa tinha um jardim que a refrescava muito no verão.
Diariamente ia ao açougue pedir aparas de carne, muxibas desprezadas pelo açougueiro. Pendurava as carnes em ganchos na cozinha e, quando amadureciam, levava-as ao parapeito e aguardava o bater de asas, os bicos aduncos e o cheiro de morte dos urubus. O chefe era um urubu-rei, assim nomeado pela crista vermelha, gorda de sangue, que lhe coroava a cabeça.
De estimação aqueles pássaros. Comiam a carne meio podre que ela, cuidadosa, tinha paciência de aguardar atingirem o ponto certo, como fazem os grandes cozinheiros com a caça. Faisandées. Assim ficavam os faisões depois de quatro dias pendurados, já começando a cheirar mal, muito chique. O almoço era sempre às onze horas. Os urubus sabiam e nunca se atrasavam.
Nesse dia, observava as aves se deliciarem com o banquete, quando Flor pousou em seu ombro. Era uma coruja em forma de crisântemo branco de penas bailarinas num balé descabelado.
Linda, linda.
Estendeu o braço e ela apoleirou-se. Ofereceu a pezinho, educada, e Maeve retirou o cone lá amarrado, de dentro do qual saiu um papiro com a mensagem.
Flor a olhou inclinando a cabeça, interrogando-a com aqueles enormes olhos luminosos. Maeve, alta, cabelos negros até o meio das coxas, preservava ainda restos da beleza sem igual da juventude em outra vida, quando fora não apenas uma, mas várias. Criara mundos e personagens com sua arte.
A mensagem tinha apenas uma palavra: ACABOU.
Imediatamente um vento leste geladíssimo, tão gelado quanto o hálito de um morto, rodopiou à sua volta em forma de mini tornado, enrolou-a na própria cabeleira que, como rede viva, a carregou pelos ares.
Um casulo.
Tão fácil carregá-la! Estava quase sem peso igual pluma ou a amor-de estudante, aquela florzinha que se vai com um sopro.
Maria Eva observou que a filha relaxara.
Então, mais devagar ainda, recomeçou:
Maeve-casulo despiu-se de seu nome, morreu mais uma vez, já a trigésima nos últimos trezentos anos e, com a leveza de um sonho, pousou no extraordinário campo verdejante. Sobre a relva transfigurou-se. Renasceu como unicórnio ainda melado pelo líquido da mãe, o pelo raso brilhando ao sol como um diamante.
Levantou-se sobre as quatro patinhas e, aos tropeços, alcançou o equilíbrio. Estava nos Campos Elísios. Era um belo unicórnio ainda sem mácula de sofrimento.
Sobre o galho dourado Flor a esperava, cabecinha em ângulo agudo sobre o corpo de crisântemo, olhões fixos no unicórnio que fora Maeve.
Estendeu o outro pé, apanhou ela mesma a mensagem com o bico recurvo e leu, usando a voz aflautada, boa para unicórnios e que lhe caía muito bem:
— Maeve, não adianta, acabou de vez: unicórnios não existem.
E bateu asas até desaparecer no céu silencioso, além, muito além do mais longínquo e esmaecido tom de azul.
Os urubus pararam de esperar pela carne apodrecida que aquele almoço garantia. Voltaram a seu trabalho de lixeiros das matas e da cidade, comendo o que achavam de mais estragado nas quebradas da vida.
Maria Eva acabou a história, sua voz foi esmaecendo aos poucos numa cantilena sonolenta até ter certeza que a menina adormecera. Levantou-se com cuidado para não a acordar. Fechou a janela do quarto. Encostou a porta. Foi buscar os panos de chão que deixara prontos à sua espera, na cozinha. Apanhou-os e voltou ao quarto, pé ante pé. Sobre a mesinha de cabeceira arrumou um café da manhã completo: leite, sanduíche e uma bela maçã, vermelha como os lábios da filhinha. Ajeitou a coberta. Fechou a porta, selou bem as frinchas para que nem uma pequena brisa por lá entrasse.
Desceu a escada. Serviu-se de uísque. Duas pedras de gelo tilintaram contra o copo de cristal. Sentou no sofá macio. Olhou o relógio. Ainda não. Esperaria a meia noite. Krants chegaria à uma hora. Nunca se atrasava.
A imagem ia e voltava como um mantra. Aquela mochila no chão. Entreaberta. O papel timbrado saindo de propósito como uma língua de serpente. Para que ela visse. Olhou seu braço onde a pele não se amoldava tanto às carnes. Krants era um urubu. E Maria Eva crente que ele ainda gostava dessa carne rara, a sua.
Inocente, apanhou o papel. E leu. Certidão de casamento. Krants, seu homem há dez anos, se casara com outra, semana passada. E a filha dos dois, aquela que dormia no quarto de cima, não contava? E, e… Segurou o soco na boca do estômago. Correu até o banheiro. Vomitou um pouco. Olhou o relógio, de novo. Latejava.Carregou para a cozinha a mais macia das almofadas. Colocou-a rente ao fogão. Sentou-se, confortável, a cabeça acomodada dentro daquela bocarra escura.
Abriu o gás.
E gritou, sem voz: NÃO! Fechou a torneira. Rápido, rápido. Subiu correndo a escada, entrou no quarto arrancando os panos que calçavam a porta. Juntou roupas na mala. Seus documentos. Os da filha. Embrulhou a menina na manta. Desceu.Tirou o carro da garagem. Deitou a criança adormecida no banco de trás. Saiu com cuidado, sem destino. De relance, viu o carro dele dobrando a esquina. Apagou os faróis. Então ouviu um grande estrondo. Carro, casa, homem, tudo pelos ares. Esquecera de mandar consertar o fogão.
Regina Taccola é médica, psicanalista e escritora. Autora dos livros: "Uma tarde embalada pelo mar" (contos, 2016) e "Vida Louca" (contos, 2017).
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