Luiz Ruffato - Inferno Provisório

Literatura contemporânea brasileira
Luiz Ruffato - Inferno Provisório - Editora Companhia das Letras - 408 Páginas - Lançamento no Brasil: 04/11/2016 (Ler aqui um trecho disponibilizado pela Editora).

É difícil escrever uma resenha objetiva ainda sob o efeito deste complexo projeto literário que é a obra "Inferno Provisório" de Luiz Ruffato. Lançado originalmente em cinco volumes pela Editora Record: "Mamma, Son Tanto Felice" (2005), "O Mundo Inimigo" (2005), "Vista Parcial da Noite"(2006), "O Livro das Impossibilidades" (2008) e "Domingo sem Deus" (2011), a pentalogia foi reescrita e editada em um único volume neste recente lançamento da Companhia das Letras. O romance, se é que podemos chamar assim, por falta de definição melhor, cobre um período de cinco décadas da história brasileira por meio de um mosaico composto por dezenas de famílias e mais de uma centena de tipos representativos da nossa população operária. Os capítulos formam unidades independentes do todo e, sem um protagonista único, os personagens vão se sucedendo em uma ordem aleatória de apresentação, podendo voltar ou não a compor a estrutura narrativa de outras histórias ao longo do livro, talvez em outras épocas. De qualquer forma, todos fazem parte de uma imensa classe de excluídos da sociedade, sem direitos básicos de cidadania, indefesos e expostos à miséria e violência de uma vida sem perspectivas.

Iniciando nos anos 1950, a malha de narrativas reflete as transformações do Brasil, de um país rural com influência das comunidades de imigrantes, no caso italianos, até a condição de industrialização forçada, e seus impactos na população de uma pequena cidade, Cataguases, no interior de Minas Gerais. Na verdade, o autor parte de uma localidade ainda menor, Rodeiro, para mostrar as movimentações da população local no fenômeno de êxodo rural, chegando até uma espécie de cortiço miserável, o Beco do Zé Pinto em Cataguases, depois expandindo para a periferia de Cataguases até chegar em 2002, mostrando o resultado da "fuga" para as grandes metrópoles brasileiras, Rio e São Paulo. Todo o tempo, o autor não está interessado na descrição dos eventos históricos, mas sim nos seus efeitos sobre o cotidiano simples dos personagens, uma forma de entender o país à partir do seu microcosmo.

Na primeira parte, "O Mundo Inimigo", são descritas as as condições de pobreza extrema no Beco do Zé Pinto que abriga uma série de famílias sem condições básicas de saúde e educação. No capítulo "A mancha" o leitor acompanha, no fluxo de consciência de Bibica, uma ex-prostituta que passa a lavar roupa para fora como forma de criar os três filhos, o seu desespero para encontrar uma forma de sobrevivência, principalmente depois da morte do caçula Marquinho de oito anos, e de como acaba se tornando amante de Antônio Português, dono de uma mercearia. A referida passagem em fluxo de consciência à seguir é um exemplo do tipo de desafio que o leitor irá enfrentar para atravessar este ambicioso monumento literário mas que, no final, se mostrará muito recompensador.
"Prometeu mundos e fundos. Que ia botar casa para ela, que assim que a Filhinha melhorasse um pouco — Agora, cuide a senhora, os médicos estão a querer internar a infeliz em Juiz de Fora — ele largava tudo, Tudo, dona Bibica! E passou a sufocá-la de presentes: pó de arroz, perfume, água de rosas, batom, espelho, esmalte, correntinha banhada a ouro. Quê que eu vou fazer com essas coisas, seu Antônio?, resistia ao assédio, porque, vivida, sabia que tudo aquilo era mentira, fantasia, ilusão. Mas, até quando teria forças? (meu deus protegei-me nesse momento difícil livrai-me das tentações será que ele gosta de mim de verdade bobiça ele quer é aproveitar mulher de zona homem é tudo a mesma coisa chupa a laranja joga fora o bagaço já conheço meu deus quantos deitaram na minha cama falaram bobagens na minha cabeça fosse lá eu acreditar estava perdida perdida e mal paga levantavam da cama punham a roupa e saíam pela porta com aquela mesma cara lambida fosse lá acreditar em promessa e se seu antônio estiver mesmo gostando de mim pra valer não não é possível casado estabelecido homem de bem não vai largar a família por causa de uma valha-me deus que pernilongada danada ê noite essa vai ser daquelas tem durma-bem no guarda-roupa não não tem acabou preciso comprar acender de noite pra espantar ave maria cheia de graça o senhor é convosco vou à missa das sete tanto tempo já o padre fala aquelas coisas bonitas orapronobis orapronobis primeira fila véu na cabeça as filhas-de-maria lá atrás pescoço levantado os pobres os ricos mais perto do altar tem gente tão sem asseio melhor ficar sozinha acreditar que seu antônio gosta de mim por quê não de repente um milagre essas coisas acontecem a cátia não casou com o dono de uma lojinha lá em leopoldina não não nasci com estrela deus ajuda sabe-se lá não não sou escolada conversa-fiada êta pernilongada disgramada que calor meu deus a missa orapronobis creio em deus pai todo poderoso criador do céu e da terra capela cheia vou levantar cedinho a lata d’água pra lavar o rosto calor seu antônio fala fala fala a missa na comunhão dos santos na remissão dos pecados na vida eterna)" -  "A mancha", da primeira parte "O Mundo Inimigo" (Págs. 27 e 28)
Na segunda parte, "Vista Parcial da Noite", o trecho abaixo é parte do capítulo "O profundo silêncio das manhãs de domingo" que bem poderia ser um conto, como tantos outros neste livro, e narra a história de Baiano que foi expulso de casa pelo pai alcoólatra, viveu no Rio de Janeiro no bairro de Bangu, mas acabou retornando para a cidade natal, Cataguases, onde constituiu uma família com quatro filhos, sendo a mulher uma ausência não explicada no texto, mas que vai provocar um final triste e trágico quando Baiano acorda o filho Cláudio muito cedo em um domingo e o chama para as margens do poluído rio Pomba (o rio, com suas enchentes, é sempre um personagem secundário em muitas passagens do romance). Baiano é conhecido na cidade por uma habilidade muito peculiar de "buscador de afogados" nos rios, lagoas e represas da região, responsável por resgatar os corpos quando o "desinfeliz engastalhava nas funduras". Contudo, os motivos que levam Baiano ao rio com seu filho preferido naquela manhã silenciosa de domingo são muito diferentes, um texto marcante e que poderia entrar em qualquer antologia.
"Baiano negaceava de emprego decente, o que talvez tenha inflamado sua ruína, imagina agora, que não adianta mais. Desde cedo negaceou patrão, não por temor de pegar no pesado, que despossuía, mas por vagas ideias de não se querer cavalgado. Fazia bicos biscates, viração, varejos, o que espaventava a carteira assinada, estabilidade, dinheiro contado no fim do mês. O pai, ignorante, bronco, enfezado, arreliava com o que denominava vagabundice. Desconhecia regime que não fosse manda quem pode, obedece quem tem juízo. (...) Em Bangu, enrabichou na cachaça. Se antes rastreava o incêndio escorregando até o fundo do fundo da garganta, pele eriçada ombros espasmódicos boca contraída abdome vergado braços convulsos — faniquitos de amador —, ali, na agonia da tarde, em torno a uma mesinha de fórmica, no momento em que o canto da sereia transbordava centenas de bicicletas operárias, todas as cores e origens, para as ruas becos, praças e avenidas, ele agarrava náufrago uma garrafa de aguardente. Deixava o trabalho, quarenta graus, paralelepípedos esbraseados derretendo a sola do sapato canhestro, mormaço ferventando a paisagem, e abancava por horas, bebendo a conversa-fiada da companheirama de copo, mastigando um churrasquinho espojado na farinha de mandioca, um jiló cozido, um torresmo, uma fatia de mortadela, um pé de galinha, um pescoço de frango, uma coxinha, uma porção de maçã-de-peito no capricho, outra de manjuba... (...) O quinze de Novembro daquele ano (sessenta? Sessenta e um?) transcorreu-o em Cataguases. Na praça Rui Barbosa, entre um saco de pipoca e outro de picolé, pouco antes da sessão das oito e meia do Cine Nello, bateu o olho numa roxa morena, cujo nome não ajeita de lembrar, paixonou, não quis voltar mais não para o Rio, nem na carteira profissional deu baixa, arrastou asa para os lados dela, ciscou interessada, adeus Bangu, bicicletaria, pensão, adeus colegas, adeus!" - "O profundo silêncio das manhãs de domingo", da segunda parte "Vista Parcial da Noite" (Págs. 166 e 167)
Na terceira parte, "Um Céu de Adobe", a decadência física e mental de Zé Pinto marca outros tempos nas habitações do beco que ele administrava, se antes havia a miséria, agora é acrescida a violência do tráfico de drogas. Nesta parte, destaco a história em retrospectiva chamada "Era uma vez" sobre as lembranças de Luís Augusto, o Guto, de uma visita de alguns dias a parentes que conseguiram se estabelecer em São Paulo, sempre um sonho para os que não tiveram coragem de abandonar Cataguases. O estilo de vida dos primos Nilson e Natalia, tão diferente da vida no interior. A paixão frustrada pela prima. O mesmo personagem voltará a aparecer, muitos anos depois, no último dia de 2002, em outra fábula que encerra o romance, durante a largada de uma corrida da São Silvestre.
"Farta, a manhã digere lenta as horas. Sob a manta azul, estirado no sofá, Guto ausculta a casa: no banheiro, intermitente gota pinga na pia encardida, fios de cabelos, restos de pasta de dente endurecida; na cozinha, espasmos histéricos da geladeira; do piso brotam longínquos fiapos de música caipira, lamentos abafados, um cachorro, uma criança, tosse tosse tosse, resmungos cicios murmúrios sussurros. Há pouco a madrinha saiu — a corrente serpenteou por entre as hastes do portão de ferro seis vezes —, passos reumáticos na calçada vazia. Antes, à hora morta da madrugada, em que a claridade mais esconde que revela, aportara o Nílson: galgou a escada que dava para a rua rumando reto ao quarto, a porta cerrada com estrondo. Antes ainda, a Natália, esquecidiça, despertara-o: acendeu a luz da sala e, notando-o, embaraçada apagou-a. Tateando a parede do corredor, penetrara no quarto, ligara o abajur, jogara a bolsa sobre a cama. No banheiro, demorou a escovar os dentes, os cabelos. Estrangeiro, o sono boiara na gelada noite incômoda — arrependido, naufragava no silêncio movediço. Pensou ver televisão, mas temeu-se inoportuno. Deliberou então cuidadoso explorar o cômodo: e tanto bisbilhotou que, poeirento, descaído por sob o catálogo de telefone, revelou-se um livro, capa dura, figuras entremeando as páginas, Os últimos dias de Pompeia, Lord Bulwer Lytton. Carregou-o para um canto e, abrindo-o, interrompeu na sala o calor da manhã de 24 de agosto de 79, aquentando outra, esta agora, quase mil e novecentos anos além. Consumiram-se as horas, o livro avançando metade afora." - "Era uma vez", da terceira parte "Um Céu de Adobe" (Pág. 220)
Na quarta parte, "Domingos sem Deus", novamente encontramos o experimentalismo arrojado do autor ao apresentar uma narrativa paralela com duas colunas (como se fossem colunas de jornal) em que conta a história de "Zezé e Dinim", dois amigos de infância que se separam quando o pai de Zezé muda com a família para o Rio de Janeiro com o objetivo de trabalhar na construção da Ponte Rio-Niterói, durante as obras da fase do milagre econômico brasileiro. Já o amigo Dinim fica na cidade natal, mas parece não haver saída para ele quando é preso, juntamente com a mulher, por um erro da juventude. Os amigos voltam a se encontrar novamente após o cumprimento da pena de Dinim, mas nunca mencionam o que ocorreu em uma tarde esquecida no passado de Cataguases.
"Em pouco, o mato adensara a tarde anoitecida, passos que se ouviam mastigando folhas maceradas, curiosos esgares de pitangueiras. Zezé pousou numa pedra lodosa, e Dinim reservou-se a mijar numa árvore escanteada. À pássara cantilena disputa a mata o silêncio da bica d'água; a frialdade imiscui nos ossos; a languidez dos dias primevos... "Zezé, vam tocar uma punheta?" Uma lufada serpenteia varrendo cismas. Avelhacado, deduziu, "Você toca nimim? Depois eu toco nocê..." Trêmulo, Dinim negaceou, "É, besta, sô!", desconvicto. Zezé: "Toca?" O outro, camisa agora embornal carregadinho de amora, encaminhou o corpo seminu para a mina, arrufou, "Bruuuh!", molhando rosto, nuca, ombros, fios gelados intrometendo entre dunas de pele morena. Dedos elásticos espargiram gotas no sono de Zezé, que, espertando, garrou o amigo e esvoaçaram ambos chão afora, ralando raízes grossas e cocô de bicho, galhos mortos e cortinas de cipó, terra derrancada e cupins baldios, formigueiros e arbustos, suor lambendo corpos, gemidos, risadas, até Dinim ausentar sem fôlego no declive e, assustado, permitir lábios langorosos sugar seu pescoço, braços nervosos atarem desnecessariamente braços arreados, um vergão fustigar sua bunda, cega a boca revirar dolente à muda, línguas substituindo palavras, e mãos caçam o pau duro e o gosto salgado invade as narinas e mãos premem cabeças que querem não querendo, esbatem e revoltam-se, agalopadas, pressão nas têmporas, aí não chupa mais ai ai ai agora você ui dói não aí não chupa mais ai ai ai agora você ui dói não aí não chupa mais ai ai ai agora você ui dói não" - "Zezé e Dinim", da quarta parte "Domingos sem Deus" (Pág. 353)
Um livro fundamental como registro das desigualdades sociais em nosso país e também uma obra-prima do ponto de vista literário, oferecendo ao leitor a oportunidade de se surpreender e emocionar com esses personagens "invisíveis" da nossa história. Sem abrir mão de um sofisticado arsenal de técnicas narrativas originais, que podem desmotivar o leitor menos experiente, o autor conseguiu deixar uma importante mensagem para o futuro, assim como outros clássicos inesquecíveis que marcaram época como "Germinal" de Emile Zola e "Os Miseráveis" de Victor Hugo. Enfim, uma resposta definitiva à questão proposta pelo próprio Luiz Ruffato em seu discurso inesquecível de abertura da feira do livro de Frankfurt em 2013: "O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora?". Certamente, entre muitas outras coisas, significa ter a responsabilidade e a coragem de escrever livros como este.

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