Franz Kafka - Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias
Franz Kafka - Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias - Editora Civilização Brasileira - 336 Páginas - Organização, Tradução e Posfácio de Marcelo Backes (Lançamento: 29/01/2018).
Talvez a obra de Franz Kafka (1883-1924) tenha sido a mais influente do século XX e seu legado literário, repleto de simbolismos e significados, em livros como: "A Metamorfose" (1915), "O Processo" (1925, póstumo) e "O Castelo" (1926, póstumo), ainda permanece relevante como representação da angústia do homem contemporâneo diante do absurdo de um mundo sem sentido. O autor, que morreu aos quarenta anos, não presenciou o reconhecimento pela importância do seu trabalho, sendo a maior parte de seus textos publicada postumamente pelo amigo Max Brod, que ignorou o desejo de Kafka de ter os seus manuscritos destruídos após a morte.
A seleção dos 35 contos desta antologia, acrescida de um drama inédito no Brasil, "O Guarda da Cripta", feita pelo tradutor e escritor Marcelo Backes, foi norteada pela sua tese de que os diferentes heróis de Kafka são sempre os mesmos e compartilham características muito comuns ao autor tais como: a solidão provocada pela inadequação ao mundo e as exigências de uma sociedade com a qual ele não se identifica, o conceito de culpa e punição, a opressão vinda de um poder que simboliza as consequências dos erros de uma educação dominadora recebida do pai, enfim uma série de elementos que se repetem não somente nos contos selecionados aqui, mas também em toda a obra de Kafka.
No brilhante posfácio que acompanha esta edição, praticamente um livro dentro do livro, Marcelo Backes desenvolve a sua tese com muitos exemplos, assim como uma visão geral da biografia e da bibliografia de Kafka, a grande ironia de "um autor 'fracassado' que veio a se tornar um dos maiores escritores do século XX." Backes apresenta algumas possíveis interpretações (entre tantas outras) para os contos desta antologia, utilizando comparações entre os próprios contos, que nos ajudam a compreender os simbolismos ocultos nas diferentes camadas do texto e que, de outra forma, poderiam passar despercebidos, principalmente para o leitor iniciante no universo kafkiano.
Um exemplo das características recorrentes do autor na sua obra, está presente no conto que empresta o título a esta antologia e que tem no seu protagonista, o solteirão Blumfeld, um elemento muito familiar ao próprio Kafka, ele também um solteirão inveterado que não conseguiu concluir quatro noivados, preferindo viver sozinho. Contudo, existem outros elementos indiretos ainda mais importantes neste conto, como a sua frustrante e opressiva atividade profissional (muito semelhante ao Gregor Samsa de "A Metamorfose"), suas neuroses e obsessões na vida privada. A solidão que faz com que Blumfeld pense em adquirir um cachorrinho para lhe fazer companhia, até que desiste ponderando sobre as vantagens e desvantagens. O absurdo acontece uma noite, ao retornar do trabalho, quando encontra em seu quarto duas esferas saltitantes que insistem em acompanhá-lo. Como sempre, não é o absurdo da situação que surpreende, mas sim a "impressão desagradável" que "aquelas duas bolas estranhas" provoca no protagonista que busca uma forma de se livrar delas.
Em "O artista da fome", publicado originalmente em um jornal alemão em 1922 e também em uma coletânea de mesmo título lançada no Brasil, a ironia amarga de Kafka chega a seu ponto mais elevado quando ele imagina, antecipando um "reality show" moderno, espectadores presenciando durante dias, sentados em frente à uma pequena jaula sem grades, a performance de um artista que se limita a jejuar por 40 dias O desinteresse gradativo neste tipo de espetáculo, no entanto, faz com que o artista tenha um final de carreira deprimente. Uma triste alegoria sobre o comprometimento do artista com o seu trabalho e a relação com o púbico.
"O foguista", publicado originalmente em 1913 e incluído posteriormente por Max Brod como o primeiro capítulo do romance inacabado "América", é uma narrativa menos sombria e poderia até mesmo, em uma leitura menos atenta, ser comparado com o estilo de um romance de aventuras do século XIX. O adolescente Karl Rossmann é obrigado pelos pais a fugir para os Estados Unidos após ter engravidado uma criada, na chegada ao porto de Nova York acaba perdendo a sua bagagem e conhecendo um problemático foguista do navio ao qual tenta ajudar de todas as formas, participando de uma espécie de julgamento. Em uma reviravolta da trama, quase chegamos a um final feliz quando o adolescente conhece o seu tio senador que vivia nos Estados Unidos.
Sempre achei que existem poucas homenagens mais importantes para um autor do que ter o próprio nome transformado em adjetivo pela importância e característica de sua obra, mesmo que este adjetivo tenha sido imortalizado como designação para situações irreais e pesadelos. Quem sabe está justamente aí o motivo para a atualidade da obra do autor que não viveu para constatar a brutalidade dos eventos da Segunda Grande Guerra, e de como a sua "ficção" acabou, de certa forma, profetizando o absurdo das detenções sem motivo, perseguições e extermínio em massa do regime nazista. Hoje, infelizmente, vivemos em um mundo cada vez mais kafkiano, bastando assistir aos noticiários para confirmar como a realidade é sempre mais surpreendente do que a ficção.
A seleção dos 35 contos desta antologia, acrescida de um drama inédito no Brasil, "O Guarda da Cripta", feita pelo tradutor e escritor Marcelo Backes, foi norteada pela sua tese de que os diferentes heróis de Kafka são sempre os mesmos e compartilham características muito comuns ao autor tais como: a solidão provocada pela inadequação ao mundo e as exigências de uma sociedade com a qual ele não se identifica, o conceito de culpa e punição, a opressão vinda de um poder que simboliza as consequências dos erros de uma educação dominadora recebida do pai, enfim uma série de elementos que se repetem não somente nos contos selecionados aqui, mas também em toda a obra de Kafka.
No brilhante posfácio que acompanha esta edição, praticamente um livro dentro do livro, Marcelo Backes desenvolve a sua tese com muitos exemplos, assim como uma visão geral da biografia e da bibliografia de Kafka, a grande ironia de "um autor 'fracassado' que veio a se tornar um dos maiores escritores do século XX." Backes apresenta algumas possíveis interpretações (entre tantas outras) para os contos desta antologia, utilizando comparações entre os próprios contos, que nos ajudam a compreender os simbolismos ocultos nas diferentes camadas do texto e que, de outra forma, poderiam passar despercebidos, principalmente para o leitor iniciante no universo kafkiano.
Um exemplo das características recorrentes do autor na sua obra, está presente no conto que empresta o título a esta antologia e que tem no seu protagonista, o solteirão Blumfeld, um elemento muito familiar ao próprio Kafka, ele também um solteirão inveterado que não conseguiu concluir quatro noivados, preferindo viver sozinho. Contudo, existem outros elementos indiretos ainda mais importantes neste conto, como a sua frustrante e opressiva atividade profissional (muito semelhante ao Gregor Samsa de "A Metamorfose"), suas neuroses e obsessões na vida privada. A solidão que faz com que Blumfeld pense em adquirir um cachorrinho para lhe fazer companhia, até que desiste ponderando sobre as vantagens e desvantagens. O absurdo acontece uma noite, ao retornar do trabalho, quando encontra em seu quarto duas esferas saltitantes que insistem em acompanhá-lo. Como sempre, não é o absurdo da situação que surpreende, mas sim a "impressão desagradável" que "aquelas duas bolas estranhas" provoca no protagonista que busca uma forma de se livrar delas.
"Até então, Blumfeld, em todos os casos de exceção em que sua força não se mostrou suficiente para dominar uma situação, lançou mão do auxílio de fazer de conta que não percebia nada. Isso muitas vezes ajudou, e na maior parte dos casos melhorou suas condições, pelo menos. Portanto, também agora ele decide se comportar desse jeito, está em pé diante da armação de cachimbos, escolhe, de lábios entreabertos, um deles, enche-o de modo especialmente minucioso com o tabaco do saquinho à mão e, deixa as bolas darem seus saltos atrás dele sem se importar. Só titubeia em ir até a mesa, mas ouvir o ritmo sincronizado dos saltos e de seus próprios passos quase lhe causa dor. De modo que fica parado, enche o cachimbo por um tempo desnecessariamente longo, e examina a distância que o separa da mesa. Por fim supera sua fraqueza e vence o trecho pisando tão duro que nem sequer ouve as bolas. Quando já está sentado, contudo, elas voltam a saltar do mesmo modo perfeitamente audível de antes, atrás de sua cadeira." (Pág. 11)Conto surpreendente que dá margem a muitas interpretações, "Investigações de um cão" tem um protagonista que não é humano, mas sim um cão que questiona a origem dos alimentos, acreditando que esta origem esteja vinculada à "irrigação do solo", na verdade o ato de urinar. O curioso neste texto é o fato do cão protagonista buscar inúmeras teorias ao longo de sua existência para explicar o fenômeno sem citar em nenhum momento o elemento humano, ausente em toda a narrativa. Ao avaliar apenas os efeitos da ação humana em seu cotidiano, desprezando a causa principal da obtenção do alimento, o cão chega a conclusões erradas. Neste momento, somos levados a uma possível e irresistível comparação com o não reconhecimento de um "deus" pelos homens. Segundo Backes nos informa no posfácio, Max Brod, que não era ateu, interpreta este conto como uma "travestia melancólica do ateísmo".
Em "O artista da fome", publicado originalmente em um jornal alemão em 1922 e também em uma coletânea de mesmo título lançada no Brasil, a ironia amarga de Kafka chega a seu ponto mais elevado quando ele imagina, antecipando um "reality show" moderno, espectadores presenciando durante dias, sentados em frente à uma pequena jaula sem grades, a performance de um artista que se limita a jejuar por 40 dias O desinteresse gradativo neste tipo de espetáculo, no entanto, faz com que o artista tenha um final de carreira deprimente. Uma triste alegoria sobre o comprometimento do artista com o seu trabalho e a relação com o púbico.
"O foguista", publicado originalmente em 1913 e incluído posteriormente por Max Brod como o primeiro capítulo do romance inacabado "América", é uma narrativa menos sombria e poderia até mesmo, em uma leitura menos atenta, ser comparado com o estilo de um romance de aventuras do século XIX. O adolescente Karl Rossmann é obrigado pelos pais a fugir para os Estados Unidos após ter engravidado uma criada, na chegada ao porto de Nova York acaba perdendo a sua bagagem e conhecendo um problemático foguista do navio ao qual tenta ajudar de todas as formas, participando de uma espécie de julgamento. Em uma reviravolta da trama, quase chegamos a um final feliz quando o adolescente conhece o seu tio senador que vivia nos Estados Unidos.
Sempre achei que existem poucas homenagens mais importantes para um autor do que ter o próprio nome transformado em adjetivo pela importância e característica de sua obra, mesmo que este adjetivo tenha sido imortalizado como designação para situações irreais e pesadelos. Quem sabe está justamente aí o motivo para a atualidade da obra do autor que não viveu para constatar a brutalidade dos eventos da Segunda Grande Guerra, e de como a sua "ficção" acabou, de certa forma, profetizando o absurdo das detenções sem motivo, perseguições e extermínio em massa do regime nazista. Hoje, infelizmente, vivemos em um mundo cada vez mais kafkiano, bastando assistir aos noticiários para confirmar como a realidade é sempre mais surpreendente do que a ficção.
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