Albert Camus - O Exílio e o Reino

Literatura francesa
Albert Camus - O Exílio e o Reino - Editora Record - 176 Páginas - Tradução de Valerie Rumjanek - Lançamento: 29/01/2018.

A Editora Record dá continuidade ao projeto de relançamento da obra completa do argelino radicado na França Albert Camus (1913-1960) com seis edições em novo projeto gráfico: “O avesso e o direito”, “O exílio e o reino”, “A inteligência e o cadafalso”, “A morte feliz”, “O mito de Sísifo” e “Estado de sítio”. No ano passado já haviam sido relançados: “O estrangeiro”, “A peste”, “O homem revoltado” e “Diário de viagem”. 

Ótima oportunidade para reler alguns dos maiores clássicos do século XX ou conhecer os títulos menos divulgados da bibliografia de Camus, Prêmio Nobel de Literatura de 1957. É o caso deste "O Exílio e o Reino", único volume de contos e último livro de ficção publicado antes de sua morte prematura em um acidente de carro no ano de 1960. O volume reúne seis contos, ambientados na África, Europa e Brasil, que refletem o absurdo da condição humana, a estranheza e inadaptação que transforma a vida em solidão ou exílio, tema que marcou toda a obra de Camus, um homem que soube resumir as grandes questões sociais e políticas do seu tempo, tanto no campo da filosofia como na ficção.

O conto de abertura desta antologia, "A melhor adúltera", é uma narrativa psicológica na qual o adultério não se concretiza da maneira como é sugerido no título. Um casal de franceses, Marcel e Janine, viaja por uma região inóspita no interior da Argélia com a finalidade de vender tecidos diretamente aos mercadores árabes. Ela acompanhara o marido porque "seria preciso energia demais para recusar", talvez um sinal de desgaste de uma longa relação em que "os anos haviam passado, na penumbra que se encarregavam de manter, com as persianas semicerradas". A crise existencial de Janine é despertada pela estranheza da imensidão sem limites da natureza, a beleza da força do deserto que faz com que ela sinta pela primeira vez o seu vazio interior e perceba que vive uma vida sem sentido ao lado do marido.
“Nenhum filho! Não era isso que lhe faltava? Ela não sabia. Acompanhava Marcel, eis tudo, contente em sentir que alguém precisava dela. Ele não lhe dava outra alegria a não ser a de se saber necessária. Certamente não a amava. O amor, mesmo cheio de ódio, não tem esse rosto descontente. Mas qual é o rosto do amor? Amavam-se no meio da noite, sem se verem, tateando. Existiria outro amor que não o das trevas, um amor que gritasse em plena luz do dia? Não sabia, mas sabia que Marcel precisava dela, e que ela precisava desse precisar, que vivia disso noite e dia, sobretudo à noite, todas as noites, quando ele não queria ficar só, nem envelhecer, nem morrer, com o ar teimoso que assumia, e que ela às vezes reconhecia no rosto de outros homens, a única semelhança entre esses loucos que se escondem sob os disfarces da razão, até que o delírio se apodere deles atirando-os desesperadamente na direção de um corpo de mulher onde enterram, sem desejo, o que a solidão e a noite lhes mostram de terrível.” - "A mulher adúltera" (Págs. 28 e 29)
Em "Os mudos" o autor relembra passagens de sua infância quando tinha um tio um pouco surdo que era tanoeiro (fabricante de tonéis e barris), profissão que Camus, proveniente de uma família pobre e órfão de pai, provavelmente teria seguido não fosse pelo apoio de um professor da escola primária. No conto, um pequeno grupo de operários volta ao trabalho depois de uma greve fracassada por melhores salários. A tanoaria de pequeno porte fica ao lado da casa do patrão chamado Lassalle. Os empregados, sem nenhuma combinação prévia, assumem a mesma postura de frieza em relação a Lassalle, permanecendo irritados e mudos diante das tentativas dele de aproximação. No entanto, a situação tende a mudar quando a filha do patrão fica gravemente doente e a mudez dos operários ganha a conotação de preocupação pela saúde da criança. A solidariedade daqueles homens pobres parece estar acima da greve e dos problemas sociais que a provocaram.
"O patrão não ia aumentar absolutamente nada, a greve fracassara. Não haviam manobrado bem, era preciso reconhecê-lo. Uma greve de raiva, à qual o sindicato tivera razão em aderir sem muita força. Aliás, uns quinze operários não era grande coisa; o sindicato levara em conta as outras tanoarias que não haviam aderido. Não se podia ficar aborrecido demais com eles. A tanoaria, ameaçada pela construção de navios e de caminhões-pipa, não ia bem. Faziam-se cada vez menos barris; consertavam-se sobretudo os grandes tonéis já existentes. Os patrões viam seus negócios comprometidos, é bem verdade, mas queriam assim mesmo preservar uma margem de lucro; ainda parecia-lhes mais simples congelar os salários, apesar da alta dos preços." - "Os mudos" (Pág. 59)
"A pedra que cresce" é um conto inspirado em uma viagem de Camus ao Brasil em 1949, quando foi até Iguape, uma cidade localizada no litoral sul do Estado de São Paulo, para conhecer a festa em louvor ao Senhor Bom Jesus de Iguape, acompanhado de Oswald de Andrade. O conto narra as experiências de um engenheiro francês chamado d'Arrast nesta mesma cidade onde deverá supervisionar a construção de uma represa. Ele se surpreende com as demonstrações de sincretismo religioso da população local. Na noite anterior à procissão católica, o francês participa de um culto de origem afro-brasileira em homenagem a São Jorge e acaba ajudando um morador local no dia seguinte a cumprir a sua promessa ao Senhor Bom Jesus de Iguape, carregando uma pedra de cinquenta quilos.
"Quando abriu os olhos, o ar continuava sufocante, mas o ruído cessara. Apenas os tambores ritmavam um batuque grave, ao som do qual, em todos os cantos do barraco, os grupos cobertos de tecidos esbranquiçados batiam os pés. Mas no centro do barraco já sem o copo e a vela, um grupo de moças negras, em estado semi-hipnótico, dançava lentamente, sempre a ponto de se deixar ultrapassar pelo compasso. De olhos fechados, mas muito eretas, elas se balançavam ligeiramente para frente e para trás, na ponta dos pés, quase no mesmo lugar. Duas delas, obesas, tinham o rosto coberto por uma cortina de ráfia. Rodeavam uma outra moça, fantasiada, alta, esguia, que d'Arrast reconheceu de repente como a filha de seu anfitrião." - "A pedra que cresce" (Pág. 162)
Albert Camus se considerava mais um escritor do que um filósofo e nunca seguiu  qualquer ideologia, criticando, por exemplo, o marxismo, apesar de sua origem pobre e a preocupação constante com as desigualdades sociais. Nesta antologia, todos os contos estão relacionados de alguma forma à inadaptação do homem com o papel que se espera dele na sociedade, seja no campo político, social ou religioso. Encontramos diversas formas de representar o isolamento a que muitas vezes se submete o indivíduo na busca de sua realização plena, que costumamos chamar de felicidade. No simbolismo de Camus, o eterno contraste entre o exílio e o reino.

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