Luisa Geisler - De espaços abandonados

Literatura brasileira contemporânea
Luisa Geisler - De espaços abandonados - Editora Alfaguara - 416 Páginas - Capa: Claudia Espínola de Carvalho - Lançamento: 18/06/2018 (Ler aqui um trecho em pdf disponibilizado pela Editora).

Preparei uma postagem, em março de 2017, com o título de 20 grandes escritoras brasileiras, na época a ideia era apresentar um painel que iniciava com as autoras nacionais clássicas até chegar, em ordem cronológica, às novas gerações. O texto terminava com a Luisa Geisler, nascida em 1991 que, mesmo muito jovem, já tinha publicado alguns livros bem-sucedidos: Contos de mentira (Record, 2011), vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2010/2011 na categoria conto, Quiça (Record, 2012) vencedor no ano seguinte do mesmo prêmio na categoria romance e o lançamento mais recente até então, muito elogiado pela crítica: Luzes de emergência se acenderão automaticamente (Alfaguara, 2014). Naquele texto eu confessava me sentir péssimo porque anda não havia lido nada da autora-fenômeno, exceto as crônicas dela no blog da Editora Companhia das Letras que continuam sendo publicadas regularmente (neste texto ela comenta sobre o novo romance).

Bem, finalmente tive a minha primeira experiência com a literatura da Luisa Geisler com um romance pra lá de experimental e que mistura metaficção, polifonia e estruturas de tempo e espaço não lineares, tudo isso sem nunca abandonar o tom bem-humorado, uma das marcas registradas da autora. Para se ter uma ideia do nível de experimentação, a narrativa, bastante fragmentada, é conduzida por trechos de arquivos de computador, mensagens e, principalmente, por meio de um manual de escrita criativa que vai sendo preenchido (no início) pela protagonista Maria Alice com fichas-resumo dos personagens, sugestões para o planejamento da estrutura do livro e, pasmem, 366 "convites" na forma de perguntas ou exercícios de escrita que podem ou não ser respondidos (normalmente não) ao longo do romance ambientado em Dublin, Irlanda, país no qual a autora viveu por um ano quando estudou o seu mestrado em Criação Literária na cidade de Cork.

Maria Alice parte para a Irlanda em busca da mãe, Lídia, desaparecida e dada como morta. A única pista é um blog fotográfico (Haikyo, "ruínas" em japonês), pretensamente atualizado por Lídia, sobre a prática de exploração urbana, ou Urbex (do inglês Urban Exploration), de ambientes abandonados como fábricas, prédios e túneis. Uma atividade que oferece riscos à segurança dos participantes, além de ser obviamente ilegal. Na verdade, este é apenas o ponto de partida de uma história que se transforma em muitas outras, contadas por brasileiros que vivem, ou melhor, tentam sobreviver, dividindo um apartamento em Dublin. A experiência de emigrar para um país estrangeiro em busca de melhores condições de vida nem sempre tem um final feliz e pode se transformar em um processo doloroso, no qual o tempo e o isolamento transformam as pessoas em algo parecido com os espaços abandonados de uma cidade.
"Quando você chega aos quilômetros industriais, fábricas e depósitos, tudo desativado, lá você está. E é lá que o itinerário do ônibus acaba. Entre essas construções, ruas industriais sem calçada, asfalto ou cinza, mas muito silêncio. Muito silêncio. Eu poderia estar no Brasil. Poderia estar em qualquer lugar. Estava na Nação da Zona Industrial. Restos de metal cercam o gradeamento e proteções de mais metal, pedras, engenhocas, pedras, concreto, partes mecânicas, madeira, pedras, cerâmica, pedras, vidro, pedras, polímeros, pedras, pneus e metal. Por um instante, tenho a certeza de que, se coletasse todo aquele lixo, eu conseguiria construir um carro. (...) Talvez eu tenha nascido para exploração urbana menos ambiciosa. Tipo subir em um telhado, ficar olhando o céu, deitar no chão, fumar um beque, falar de dinossauros e ir para casa. Não é exatamente fazer estrelinhas na beirada de uma ponte abandonada ou explorar usinas nucleares desativadas na Bielorrússia. É? Por outro lado, não mereço morrer por ter uma imaginação ruim." (Págs. 112 e 113)
Uma das vozes narradoras que "rouba a cena" do romance é a da personagem Bruna, ou Bunny como é apelidada pelos amigos, extrovertida e popular, ela tem uma personalidade oposta à de Maria Alice e, assim como ela, faz parte da comunidade de brasileiros imigrantes que compartilham o eterno conflito entre a sobrevivência e a busca de sentido de estar na Irlanda. Bruna é separada e deixou uma filha pequena no Brasil, ela ganha dinheiro com algumas atividades inusitadas como: vender calcinhas usadas na internet, trabalhar em um pub chamado "three barrels and a queen's head" e negociar eventualmente algumas balas ("ecstasy") recebidas do seu confidente e traficante de drogas predileto. O trecho abaixo é uma espécie de fluxo de consciência em estado de felicidade induzida pelo ecstasy.
"Eu me embalava no ritmo da música com baixos cremosos. Baixos talvez sejam os melhores instrumentos musicais que Deus já pôs na terra. Tentei tergiversar, e tergiversar era a coisa que melhor fazia em toda a minha vida. Espera aí: não era esse o verbo que eu queria. Queria abraçar e beijar e lamber a cara dos irlandeses lindos dançando de uma maneira esquisita entre si em frente a uma caixa de som, enquanto dava high-fives nos nórdicos estonteantes, amigos do Andreas, que só faziam contato visual se bebiam, e dizer aos três mexicanos deslumbrantes e isolados num canto sem beber que entendia perfeitamente. Porque eu entendia perfeitamente. E que eles eram maravilhosos, porque eram mesmo. O México é um país incrível, não é? Colorido, vivo, expressivo. O México fala comigo. Porque eu entendia perfeitamente. Completamente. Corretamente. Entendia direito, certo, com acerto, conforme as regras, sem erros, bem, muito, justamente, precisamente, exatamente, com exatidão, distintamente. Queria fazer carinho na bunda maravilhosa do belo Pedro, que agora estava sentado no bar mexendo no celular, e dizer que ele era uma pessoa incrível, talvez o melhor colega que eu já tivesse tido em todo o curso. E eu sabia que tinha quase tudo do curso, mas o Pedro era fora de série. O Pedro era incrível. Mas muita gente ocupava o espaço entre as caixas de som da pista até o bar, então eu não chegaria a tempo de fazer carinho na gloriosa cintura de Pedro e dizer que o amava. Just dance, gonna be o.k. Ele ia achar alguém antes, não ia? Ia mudar de rota. Porque eu entendia perfeitamente." (Pág. 211)
Essa é a história da Maria Alice, Maicou (Matildo), Bruna (Bunny), Caetano, Maria Eduarda, Janaína, um gato adotado chamado Taco Cat e muitas outras almas perdidas em Dublin. Apesar de ser um romance extremamente ambicioso do ponto de vista de técnica narrativa, não considero como um mero exercício de virtuosismo literário. Neste caso, a forma foi induzida pelo conteúdo e, ao terminar o livro, fiquei com a impressão de que não havia melhor maneira de contar essas histórias. A minha conclusão é que não sei por que levei tanto tempo para conhecer a Luisa Geisler, espero que vocês não cometam o mesmo erro.

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