Alberto Mussa - A biblioteca elementar

Literatura brasileira
Alberto Mussa - A biblioteca elementar - Editora Record - 192 Páginas - Projeto gráfico da capa: Regina Ferraz - Design dos mapas e cartas celestes: Mayara Lista - Lançamento: 13/08/2018.

O romance encerra um ciclo denominado "Compêndio mítico do Rio de Janeiro", uma sequência de cinco obras independentes, sendo os quatro primeiros títulos em ordem de lançamento: O trono da rainha Jinga, O senhor do lado esquerdo, A primeira história do mundo e A hipótese humana. Na pentalogia, cada romance é ambientado em um século da história carioca, o gênero policial é o ponto de partida para que o o autor utilize na sua ficção as influências culturais presentes no Rio de Janeiro por meio do encontro das culturas ameríndias, africanas e das tradições populares brasileiras, as diferentes etnias formando o imaginário e o panorama mitológico do povo carioca. Um ponto importante destacado por Alberto Mussa em sua nota introdutória é que: "se as mitologias variam, e divergem entre si, condicionadas que são pela cultura e pela história, os problemas míticos, os problemas humanos são essencialmente os mesmos, independentes do tempo e do espaço."

A biblioteca elementar utiliza uma deliciosa linguagem que remete aos costumes do passado e a um erotismo perfeitamente enquadrado na narrativa, o romance conta ainda com os seguintes elementos de apoio à trama: uma misteriosa biblioteca e a prática das ciências ocultas para controlar o universo dos vivos e dos mortos. O romance é ambientado, em sua maior parte, durante o ano de 1733, nas imediações do convento de Santo Antônio, onde hoje fica localizado o Largo da Carioca, no Centro do Rio de Janeiro, na época uma região pouco habitada devido ao fato de ficar fora dos limites da muralha construída por ocasião da invasão francesa de 1711. A ação ocorre na Rua do Egito, criação ficcional do autor, que imaginou uma comunidade de ciganos vivendo em construções irregulares e clandestinas nesta rua que recebeu a denominação atual de Rua da Carioca somente em 1808.

Um crime é testemunhado, durante a noite, por uma mulher que praticava também uma ação bastante suspeita ao retornar do cemitério do Convento de Santo Antônio disfarçada em um traje franciscano. Ela consegue identificar dois homens e deduzir a natureza da discussão que tem início, presenciando de longe a luta que ocorre quando um deles saca uma pistola e, esse mesmo, acaba sendo assassinado. Como em todo bom romance policial, o leitor é envolvido por uma série de suspeitas que envolvem as atividades da comunidade de ciganos e as motivações relacionadas com segredos, traições e, principalmente, a prática de adultério, considerada pela Inquisição do século XVIII como um crime passível de punição com a morte, assim como o "pecado nefando" como era conhecida na época a sodomia, outro elemento da trama.
"Começo pela testemunha: mulher, relativamente branca, perto dos seus trinta anos. Posso afiançar que é bela, como a concebo hoje; e que tem uma audácia extraordinária, como se constatará. (...) Não comete o crime de andar sozinha à noite — porque tal comportamento tinha deixado de ser ilegal, para as mulheres, desde quando foi bispo frei Francisco de São Jerônimo. No instante em que a surpreendemos, metida num burel surrado e cinzento dos franciscanos, caminha por entre as covas rasas do cemitério de pretos, que ficava dentro dos limites do convento de Santo Antônio, propriedade daquela ordem, no Largo da Carioca. (...) É uma noite quente da primavera tropical: sexta-feira, 13 de novembro de 1733. O céu está praticamente sem nuvens; e a lua, em Aquário, na casa da Morte, declina sobre o horizonte equívoco do Rio de Janeiro. Além dela, apenas Saturno é visível, muito alto, no ponto do meio-dia." - Capítulo 1 - O crime da Rua do Egito (Pág. 17)
O adultério é considerado pela sociedade da época como uma prova e consequência da culpa eterna da mulher. Alberto Mussa comenta em uma entrevista como, desde a narrativa bíblica, a mulher instiga o homem a cometer o Pecado Original e ainda, em muitas partes do mundo, as mulheres são consideradas responsáveis "pelo afastamento da divindade da comunidade humana, pela origem da morte etc. E são culpadas por serem curiosas, não guardarem segredos, terem desejos sexuais excessivos ou adúlteros. A mulher é, na perspectiva desses mitos, um agente elementar do Mal." Essa questão é uma chave importante no desfecho do romance e propicia uma reflexão interessante sobre a possibilidade dessa visão sobre a mulher ainda prevalecer em algumas sociedades da nossa época.
"Não surpreenderei tantas leitoras se disser que quase dois terços das mulheres presas pela Inquisição, no Brasil, residiam no Rio de Janeiro. (...) O dado é tão mais significativo quando comparado aos números masculinos: só um quarto dos detentos era carioca. A maioria deles (um terço) morava, naturalmente, na populosa cidade da Bahia, então capital. De uma perspectiva meramente estatística, há veemente distorção, para mais na tabela feminina, já que o número de presas, no Rio de Janeiro, é desproporcional ao de habitantes. Para que se tenha uma noção, as baianas não alcançavam um quinto do total de mulheres detidas na colônia. (...) Num romance, análises importam muito pouco. A verdade está no símbolo. E essas cifras históricas definem e sintetizam o espírito do Rio de Janeiro, cidade de mulheres infratoras: cidade de amazonas." - Capítulo 8 - As vergonhas de Páscoa Muniz (Pág. 85)
Se existe algo como uma "literatura carioca" e acredito que sim, porque há algumas obras que se identificam com a história e a cultura do Rio de Janeiro, Alberto Mussa é um expoente dessa vertente. Um livro muito bem construído que pode ser considerado tanto um romance histórico quanto policial e, certamente, agradará aos leitores de ambas as categorias. Recomendado não somente para os cariocas, mas também para todos os brasileiros que desejarem conhecer a história do Brasil Colônia setecentista e saber como alguns mitos dessa época formaram a nossa identidade atual como nação.

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