Tadeu Sarmento - Um carro capota na lua
Tadeu Sarmento - Um carro capota na lua - Tercetto Editora - 82 Páginas
Projeto gráfico e capa: Glória Campos - Fotografia e pesquisa iconográfica para capa: Thais Guimarães - Revisão: Adriane Garcia - Lançamento: Dezembro/2018.
Livro vencedor do Prêmio Governo Minas Gerais de Literatura, na categoria Poesia, em 2016, Um carro capota na lua, de Tadeu Sarmento, foi finalmente publicado como livro inaugural da Tercetto Editora, um projeto da poeta Thais Guimarães e da designer gráfica Glória Campos. Um lançamento que comprova como o livro impresso ainda é viável no mercado editorial, assim como a existência e persistência de um público leitor de poesia em nosso país, apesar de tudo.
Tadeu Sarmento sabe muito bem lidar com o espanto, matéria-prima de todo bom poeta que tenta surpreender o leitor em seu triste e insípido cotidiano, recriando uma nova realidade, mesmo que ela seja completamente nonsense. Esta é a chave do movimento surrealista na literatura, quando escritores como André Breton e Paul Éluard buscaram uma forma de expressão do inconsciente por meio de associações de ideias e experimentações com a linguagem. Neste livro, ocorre um procedimento semelhante, a estrutura formal do poema, seja em termos de rima ou métrica, é superada pela indução do efeito psíquico.
Coreografia
Aranhas aguardam na teia
O inseto despreocupado.
Aguardam por dias com
A paciência de cânceres
Sem diagnóstico. Cortada
Pela luz a teia brilha como
Saliva iluminada por um flash,
Até que o inseto caia distraído
E a aranha desça, mas não para dançar.
Independente da abordagem teórica, logo se percebe que os poemas mexem com áreas sensíveis e escondidas do subconsciente. "A paciência de cânceres sem diagnóstico" é um exemplo desse gatilho que choca o leitor desprevenido quando ele esperava uma espécie de fábula sobre aranhas e insetos. Vale notar que todo o efeito é conseguido em um curto espaço de manobra, em poucas linhas explode o artefato em "versos-bomba", como bem definido pelo também poeta Alberto Bresciani no texto de apresentação do livro.
Meio dia
Leu sobre a arte de comer diante
De estranhos. Sobre ciclistas percorrendo
Trilhas próximas a vulcões. Sobre vulcões
Nada sabia. À sua frente, no restaurante, uma
Anestesista discute com alguém ao telefone.
Mesmo com raiva não comete erros de pronúncia
E sua voz é reta e firme como se saída de máquinas
De costura tampadas. Todos comem por igual, quase
Na mesma velocidade, parece que lá fora há prazos a
Serem cumpridos. Sabemos que ela é anestesista pois
Tudo o que diz parece não doer, embora devesse doer.
Depois há um momento acima do ruído dos talheres,
E todos terminam o almoço. A água dos banheiros
Toca as mãos como um antigo remorso.
Em "Meio dia" fica o gosto amargo de inadequação quando percebemos, por intermédio de um observador solitário, que o mundo se repete, sem imaginação, em um almoço onde "todos comem por igual, quase na mesma velocidade" enquanto os malditos prazos lá fora precisam ser cumpridos. Lindo não é mesmo? Quem já não se sentiu assim em algum momento.
Mas nem sempre o tema é complexo ou pesado e, sorrateiramente, a poesia escapa para um território onde pode falar diretamente ao coração como nos poemas "Carta de intenções" e "Eletrocardiograma" que me lembraram muito a simplicidade e o bom humor de alguns textos da geração mimeógrafo, principalmente dos poemas de Cacaso (O meu amor e eu / nascemos um para o outro / agora só falta quem nos apresente). O amor, desde sempre, é ótimo combustível para a poesia. Vale muito a pena conhecer esses acidentes lunares.
Carta de intenções
A memória do amor —
É longa a lista de suas
Doenças transmissíveis:
"Você ainda está em mim
Como cicatrizes de vacina
Disfarçadas de varíola.
Mas eu contrairia tudo novamente.
Menos as dívidas de banco".
Eletrocardiograma
Não tenho nada no coração
Só uns poemas de amor
Pregados em ímãs de geladeira.
Sobre o autor: Tadeu Sarmento é pernambucano e reside em Belo Horizonte. Em 2014, foi premiado no “II Prêmio Pernambuco de Literatura” com o romance Associação Robert Walser para sósias anônimos (CEPE, 2015). Tem também publicados: E se Deus for Um de Nós? (Confraria do Vento, 2016) e O Cometa é um Sol que não Deu Certo (SM Edições), vencedor do "13º Prêmio Barco a Vapor 2017".
Tadeu Sarmento sabe muito bem lidar com o espanto, matéria-prima de todo bom poeta que tenta surpreender o leitor em seu triste e insípido cotidiano, recriando uma nova realidade, mesmo que ela seja completamente nonsense. Esta é a chave do movimento surrealista na literatura, quando escritores como André Breton e Paul Éluard buscaram uma forma de expressão do inconsciente por meio de associações de ideias e experimentações com a linguagem. Neste livro, ocorre um procedimento semelhante, a estrutura formal do poema, seja em termos de rima ou métrica, é superada pela indução do efeito psíquico.
Coreografia
Aranhas aguardam na teia
O inseto despreocupado.
Aguardam por dias com
A paciência de cânceres
Sem diagnóstico. Cortada
Pela luz a teia brilha como
Saliva iluminada por um flash,
Até que o inseto caia distraído
E a aranha desça, mas não para dançar.
Independente da abordagem teórica, logo se percebe que os poemas mexem com áreas sensíveis e escondidas do subconsciente. "A paciência de cânceres sem diagnóstico" é um exemplo desse gatilho que choca o leitor desprevenido quando ele esperava uma espécie de fábula sobre aranhas e insetos. Vale notar que todo o efeito é conseguido em um curto espaço de manobra, em poucas linhas explode o artefato em "versos-bomba", como bem definido pelo também poeta Alberto Bresciani no texto de apresentação do livro.
Meio dia
Leu sobre a arte de comer diante
De estranhos. Sobre ciclistas percorrendo
Trilhas próximas a vulcões. Sobre vulcões
Nada sabia. À sua frente, no restaurante, uma
Anestesista discute com alguém ao telefone.
Mesmo com raiva não comete erros de pronúncia
E sua voz é reta e firme como se saída de máquinas
De costura tampadas. Todos comem por igual, quase
Na mesma velocidade, parece que lá fora há prazos a
Serem cumpridos. Sabemos que ela é anestesista pois
Tudo o que diz parece não doer, embora devesse doer.
Depois há um momento acima do ruído dos talheres,
E todos terminam o almoço. A água dos banheiros
Toca as mãos como um antigo remorso.
Em "Meio dia" fica o gosto amargo de inadequação quando percebemos, por intermédio de um observador solitário, que o mundo se repete, sem imaginação, em um almoço onde "todos comem por igual, quase na mesma velocidade" enquanto os malditos prazos lá fora precisam ser cumpridos. Lindo não é mesmo? Quem já não se sentiu assim em algum momento.
Mas nem sempre o tema é complexo ou pesado e, sorrateiramente, a poesia escapa para um território onde pode falar diretamente ao coração como nos poemas "Carta de intenções" e "Eletrocardiograma" que me lembraram muito a simplicidade e o bom humor de alguns textos da geração mimeógrafo, principalmente dos poemas de Cacaso (O meu amor e eu / nascemos um para o outro / agora só falta quem nos apresente). O amor, desde sempre, é ótimo combustível para a poesia. Vale muito a pena conhecer esses acidentes lunares.
Carta de intenções
A memória do amor —
É longa a lista de suas
Doenças transmissíveis:
"Você ainda está em mim
Como cicatrizes de vacina
Disfarçadas de varíola.
Mas eu contrairia tudo novamente.
Menos as dívidas de banco".
Eletrocardiograma
Não tenho nada no coração
Só uns poemas de amor
Pregados em ímãs de geladeira.
Sobre o autor: Tadeu Sarmento é pernambucano e reside em Belo Horizonte. Em 2014, foi premiado no “II Prêmio Pernambuco de Literatura” com o romance Associação Robert Walser para sósias anônimos (CEPE, 2015). Tem também publicados: E se Deus for Um de Nós? (Confraria do Vento, 2016) e O Cometa é um Sol que não Deu Certo (SM Edições), vencedor do "13º Prêmio Barco a Vapor 2017".
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