João Guimarães Rosa - Grande sertão: veredas
João Guimarães Rosa - Grande sertão: veredas - Editora Companhia das Letras - 552 Páginas - Capa e projeto gráfico: Alceu Chiesorin Nunes - Ilustrações das orelhas e do miolo: Poty Lazzaroto - Lançamento: 25/02/2019 (Leia aqui um trecho em pdf disponibilizado pela Editora).
Uma justa homenagem a um livro fundamental da literatura brasileira, romance-monumento para se ler e reler durante toda a vida e que permanece moderno e desafiador devido à sua estrutura complexa e ao experimentalismo linguístico. Esta edição da Companhia das Letras, nova detentora dos direitos de publicação da obra, seguiu o texto consolidado por Guimarães Rosa na segunda edição, publicada pela Livraria José Olympio Editora em agosto de 1958, incluindo ainda uma linha do tempo sobre a vida do autor e sua obra, indicações de leituras complementares e fortuna crítica sobre Grande sertão: veredas, com uma seleção cronológica de ensaios de Roberto Schwarz, Walnice Nogueira Galvão, Benedito Nunes, Davi Arrigucci Jr. e Silviano Santiago. Dois trechos da correspondência entre Clarice Lispector e Fernando Sabino, comentando as suas impressões sobre a leitura, ilustram muito bem a surpresa e o entusiasmo no meio literário da época, apesar das avaliações da crítica especializada não terem sido unânimes, como ocorre com toda criação artística revolucionária.
O cuidado com esta que já é a 22ª edição do romance, desde o seu lançamento original em 1956, começa pelo projeto gráfico da capa que foi desenvolvida com base em uma reprodução na forma de bordado do avesso do Manto da apresentação, do artista Arthur Bispo do Rosário, desenhos originais de Poty Lazzarotto, que também ilustrou as primeiras edições do livro e uma guarda do volume em tecido vermelho. A Editora Companhia das Letras planejou ainda o lançamento de 63 exemplares numerados, em comemoração aos 63 anos de publicação da obra. Esta edição de luxo terá acabamento especial em capa dura com baixo relevo e costura aparente, sendo entregue em uma caixa feita de buriti por uma rede de artesãs do sertão.
Outro exemplo de cuidado com a preparação deste relançamento foi na preservação de desvios intencionais e/ou arcaizantes do autor a partir da ortografia vigente na época, fazendo somente as atualizações ortográficas obrigatórias como a queda da acentuação em "êle" e "aquêle", ou outras alterações mais recentes como "vôo" e "idéia" (Guimarães Rosa sempre foi contrário à unificação da ortografia portuguesa, diga-se de passagem). Sendo assim, foram mantidas as experimentações do autor com a linguagem, inclusive nos trechos citados neste texto, onde encontra-se todo tipo de expressão da prosa rosiana, desde alterações ortográficas como em "tôrto", "dôidas" e "dôr", até os regionalismos adaptados e os neologismos mais delirantes que, juntamente com a estrutura gramatical, promovem a dificuldade e também o prazer da leitura.
O romance tem início com um travessão, mas logo o leitor perceberá que está diante de um longo e caudaloso monólogo que se estenderá até o final do livro, sem divisão de capítulos, disfarçado na forma de um diálogo com um interlocutor-ouvinte, culto e da cidade, que em nenhum momento se pronuncia. Para penetrar neste emaranhado narrativo é preciso ter o olhar mais distanciado, vencendo a barreira inicial de estranhamento, deixando-se levar pelo ritmo da narrativa e sem se perder nos detalhes (que podem ser objeto, literalmente, de toda uma vida de estudos). Logo nas primeiras páginas é apresentado o impasse metafísico principal do protagonista e narrador, Riobaldo, ex-jagunço, o contraste entre o bem e o mal, o poder de Deus e do Diabo, Fausto em pleno sertão: "E, mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do demônio. Será não? Será?" (p. 15)
Uma justa homenagem a um livro fundamental da literatura brasileira, romance-monumento para se ler e reler durante toda a vida e que permanece moderno e desafiador devido à sua estrutura complexa e ao experimentalismo linguístico. Esta edição da Companhia das Letras, nova detentora dos direitos de publicação da obra, seguiu o texto consolidado por Guimarães Rosa na segunda edição, publicada pela Livraria José Olympio Editora em agosto de 1958, incluindo ainda uma linha do tempo sobre a vida do autor e sua obra, indicações de leituras complementares e fortuna crítica sobre Grande sertão: veredas, com uma seleção cronológica de ensaios de Roberto Schwarz, Walnice Nogueira Galvão, Benedito Nunes, Davi Arrigucci Jr. e Silviano Santiago. Dois trechos da correspondência entre Clarice Lispector e Fernando Sabino, comentando as suas impressões sobre a leitura, ilustram muito bem a surpresa e o entusiasmo no meio literário da época, apesar das avaliações da crítica especializada não terem sido unânimes, como ocorre com toda criação artística revolucionária.
O cuidado com esta que já é a 22ª edição do romance, desde o seu lançamento original em 1956, começa pelo projeto gráfico da capa que foi desenvolvida com base em uma reprodução na forma de bordado do avesso do Manto da apresentação, do artista Arthur Bispo do Rosário, desenhos originais de Poty Lazzarotto, que também ilustrou as primeiras edições do livro e uma guarda do volume em tecido vermelho. A Editora Companhia das Letras planejou ainda o lançamento de 63 exemplares numerados, em comemoração aos 63 anos de publicação da obra. Esta edição de luxo terá acabamento especial em capa dura com baixo relevo e costura aparente, sendo entregue em uma caixa feita de buriti por uma rede de artesãs do sertão.
Outro exemplo de cuidado com a preparação deste relançamento foi na preservação de desvios intencionais e/ou arcaizantes do autor a partir da ortografia vigente na época, fazendo somente as atualizações ortográficas obrigatórias como a queda da acentuação em "êle" e "aquêle", ou outras alterações mais recentes como "vôo" e "idéia" (Guimarães Rosa sempre foi contrário à unificação da ortografia portuguesa, diga-se de passagem). Sendo assim, foram mantidas as experimentações do autor com a linguagem, inclusive nos trechos citados neste texto, onde encontra-se todo tipo de expressão da prosa rosiana, desde alterações ortográficas como em "tôrto", "dôidas" e "dôr", até os regionalismos adaptados e os neologismos mais delirantes que, juntamente com a estrutura gramatical, promovem a dificuldade e também o prazer da leitura.
O romance tem início com um travessão, mas logo o leitor perceberá que está diante de um longo e caudaloso monólogo que se estenderá até o final do livro, sem divisão de capítulos, disfarçado na forma de um diálogo com um interlocutor-ouvinte, culto e da cidade, que em nenhum momento se pronuncia. Para penetrar neste emaranhado narrativo é preciso ter o olhar mais distanciado, vencendo a barreira inicial de estranhamento, deixando-se levar pelo ritmo da narrativa e sem se perder nos detalhes (que podem ser objeto, literalmente, de toda uma vida de estudos). Logo nas primeiras páginas é apresentado o impasse metafísico principal do protagonista e narrador, Riobaldo, ex-jagunço, o contraste entre o bem e o mal, o poder de Deus e do Diabo, Fausto em pleno sertão: "E, mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do demônio. Será não? Será?" (p. 15)
"Agora, bem: não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso; chega. Mas tem um porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto? Não, não é não? Sei que não há. Falava das favas. Mas gosto de toda boa confirmação. Vender sua própria alma... Invencionice falsa! E, alma, o que é? Alma tem de ser coisa interna supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se pensa: ah, alma absoluta! Decisão de vender alma é afoitez vadia, fantasiado de momento, não tem a obediência legal. Posso vender essas boas terras, daí de entre as Veredas-Quatro – que são dum senhor Almirante, que reside na capital federal? Posso algum!? Então, se um menino menino é, e por isso não se autoriza de negociar... E a gente, isso sei, às vezes é só feito menino. Mal que em minha vida aprontei, foi numa certa meninice em sonhos – tudo corre e chega tão ligeiro –; será que se há lume de responsabilidades? Se sonha; já se fez... Dei rapadura ao jumento! Ahã. Pois. Se tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não queira. Não é vendível. O senhor não acha? Me declare, franco, peço. Ah, lhe agradeço. Se vê que o senhor sabe muito, em ideia firme, além de ter carta de doutor. Lhe agradeço, por tanto. Sua companhia me dá altos prazeres." (p. 25)
A guerra é uma constante na vida de Riobaldo e, quando ele e seu bando estão cercados na famosa batalha da Fazenda dos Tucanos, a passagem do fuzilamento dos cavalos é uma espécie de pintura de tão visual. Os inimigos do grupo de Riobaldo, liderados pelo terrível Hermógenes, que supostamente teria um pacto com o diabo, decidem atirar nos cavalos presos no curral. Os animais são humanizados na descrição, com "mãos" e "queixos", e não têm como escapar da morte brutal, sendo reproduzido no texto todo o horror da imagem dos pobres cavalos assassinados, sem chance de fuga. O corretor ortográfico briga com este texto que transborda de neologismos como uma forma magistral de pintar esta Guernica nordestina.
"[...] Aí lá cheio o curralão, com a boa animalada nossa, os pobres dos cavalos ali presos, tão sadios todos, que não tinham culpa de nada; e eles, cães aqueles, sem temor de Deus nem justiça de coração, se viraram para judiar e estragar, o rasgável da alma da gente – no vivo dos cavalos, a tôrto e direito, fazendo fogo! Ânsias, ver aquilo. Alt'-e-baixos – entendendo, sem saber, que era o destapar do demônio – os cavalos desesperaram em roda, sacolejados esgalopeando, uns saltavam erguidos em chaça, as mãos cascantes, se deitando uns nos outros, retombados no enrolar dum rolo, que reboldeou, batendo com uma porção de cabeças no ar, os pescoços e as crinas sacudidas esticadas, espinhosas: eles eram só umas curvas retorcidas! Consoante o agarre do rincho fino e curtinho, de raiva – rinchado; e o relincho de medo – curto também, o grave e rouco, como urro de onça, soprado das ventas todas abertas. Curro que giraram, trompando nas cercas, escouceantes, no esparrame, no desembêsto – naquilo tudo a gente viu um não haver de dôidas asas. Tiraram poeira de qualquer pedra! Iam caindo, achatavam no chão, abrindo as mãos, só os queixos ou os topetes para cima, numa tremura. Iam caindo, quase todos, e todos; agora, os de tardar no morrer, rinchavam de dôr – o que era um gemido alto, roncado, de uns como se estivessem quase falando, de outros zunido nos dentes, ou saído com custo, aquele rincho não respirava, o bicho largando as forças, vinha de apertos, de sufocados." (p. 245)
Uma dificuldade, entre tantas outras, para o resenhista nessa imensa travessia está na classificação do romance, seria um épico sertanejo com base na tradição oral, romance de formação ou simplesmente uma história de amor? A relação de Riobaldo com Diadorim é um dos maiores contrastes do livro, amizade masculina que se transforma em amor e que não pode ser revelada e concretizada no meio violento em que convivem. O amor proibido entre jagunços, e em pleno sertão, não deixa de ser também uma abordagem moderna (mesmo com o final pouco convincente, na minha opinião, quase que uma concessão à sociedade da época).
"Deixei meu corpo querer Diadorim; minha alma? Eu tinha recordação do cheiro dele. Mesmo no escuro, assim, eu tinha aquele fino das feições, que eu não podia divulgar, mas lembrava, referido, na fantasia da ideia. Diadorim – mesmo o bravo guerreiro – ele era para tanto carinho: minha repentina vontade era beijar aquele perfume no pescoço: a lá, onde se acabava e remansava a dureza do queixo, do rosto... Beleza – o que é? E o senhor me jure! Beleza, o formato do rosto de um: e que para outro pode ser decreto, é, para destino destinar... E eu tinha de gostar tramadamente assim, de Diadorim, e calar qualquer palavra. Ele fosse uma mulher, e à-alta e desprezadora que sendo, eu me encorajava: no dizer paixão e no fazer – pegava, diminuía: ela no meio de meus braços! Mas, dois guerreiros, como é, como iam poder se gostar, mesmo em singela conversação – por detrás de tantos brios e armas? Mais em antes se matar, em luta, um o outro. E tudo impossível. Três-tantos impossível, que eu descuidei e falei: – '...Meu bem, estivesse dia claro, e eu pudesse espiar a cor de seus olhos...' –; o disse, vagável num esquecimento, assim como estivesse pensando somente, modo se diz um verso." (pp. 412-3)
De todos os clássicos da literatura brasileira, talvez Grande sertão: veredas seja o mais reverenciado, intransponível na sua inventividade e, infelizmente, o menos lido. Nesta experiência com o romance, em uma fase mais madura da minha vida, encontrei a força e a mágica que somente as grandes obras têm de se transformarem junto com a gente, mudando com o tempo. Afinal, como eu sempre me pergunto, mudamos nós ou mudaram os livros? "Viver é negócio muito perigoso...", já dizia Riobaldo, velho de guerra!
"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia." (p. 230)
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