Cinthia Kriemler - Todos os abismos convidam para um mergulho

Literatura contemporânea brasileira
Cinthia Kriemler - Todos os abismos convidam para um mergulho - Editora Patuá 
272 Páginas - Projeto gráfico e Diagramação: Leonardo Mathias - Lançamento: 2017

Neste romance de estreia, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018, Cinthia Kriemler demonstra segurança ao abordar temas difíceis e, infelizmente, cada vez mais comuns em nossa sociedade: violência de gênero doméstica, abuso sexual e depressão. Apesar da abordagem psicológica e da carga de sofrimento associada a esses assuntos, a autora sabe como prender a atenção do leitor desde o início até o final do livro com uma narrativa veloz, feita de sentenças curtas e cortantes como golpes, ações que surpreendem e revelam intenções e motivações dos personagens em cada parágrafo. Talvez seja uma técnica adquirida por meio de seus livros anteriores, todos de narrativas curtas ou crônicas: Na escuridão não existe cor-de-rosa (Editora Patuá, contos, 2015) – obra semifinalista do Prêmio Oceanos 2017; Sob os escombros (Editora Patuá, contos, 2014); Do todo que me cerca (Editora Patuá, crônicas, 2012) e Para enfim me deitar na minha alma (projeto aprovado pela FAC-DF, contos, 2010).

Em Todos os abismos convidam para um mergulho a narrativa é conduzida em primeira pessoa por Beatriz, uma protagonista nada confiável – o melhor e mais difícil tipo de protagonista-narrador na literatura –, uma espécie de anti-heroína que atravessa um drama pessoal de grandes proporções após o suicídio da filha, Laura, e o processo de separação inevitável. Beatriz trabalha há vinte anos com Serviço Social, uma profissão que lida com os efeitos de "coisas que não deveriam acontecer", e carrega a terrível culpa por não ter identificado na própria filha as evidências de um diagnóstico de depressão que terminou da pior forma possível: "um brinquedo sem uso, uma janela sempre fechada, uma criança que não sorri" são todos sinais, nem sempre claros, "gritos feitos só para ouvidos atentos."
"Um brinquedo sem uso, uma janela sempre fechada, uma criança que não sorri. Coisas que destoam. Gritos feitos só para ouvidos atentos. Você e seus gestos assustados, Laura. Você que não queria brincar. Você que não saía do quarto. E eu que não estava lá. Que não via nada demais. Que não ouvia as ausências. Que não via os olhos foscos de quem nunca vibra. Ocupada com mulheres e crianças que precisavam de mim, da minha ajuda. Envolvida com mães que apanhavam, pais que batiam, meninas e meninos queimados com pontas de cigarro, arroxeadas pelos socos bêbados e furiosos de quem deveria protegê-los. Eu, sufocada, pelos corpos sem vida que dançavam nos meus sonhos inquietos. Choros, choros, choros. Sempre dos outros. Brinquedos, comida, escola, roupas, médicos. Isso era seu. E também eram o meu cansaço, a minha irritação, a minha impaciência. E a minha incapacidade de enxergar a coisas mais próximas. Eu enxergava os que estavam lá fora. Os que não tinham nada. Meninos e meninas que não sorriam. Que não brincavam. Que não comiam. Que não iam ao médico. Que se escondiam de pais e tios e padrastos atrás de portas trancadas, embaixo de camas. Rezando ao deus do não. Sem saber como pedir ajuda. Mas você não era a menina pobre de comunidade. Não era a filha de um lar abusivo. Ou era?" (p. 20)
Em seu trabalho de assistente social, Beatriz dá acolhimento diário às vítimas de agressões e abusos domésticos, mulheres "surradas, roxas e deformadas, nada além da rotina depravada que deixam como legado para as crianças que põem no mundo", essas sim, as crianças molestadas, são as maiores vítimas desse sistema injusto porque não existem opções nem chance de defesa para elas, prisioneiras da miséria naquilo que ela tem de mais terrível, a negação da dignidade humana. Muitas vezes, ocorre também um padrão de comportamento no qual mulheres, meninos e meninas, tendem a esconder os sinais das violências sofridas e mentir por medo de serem assassinados, até que seja tarde demais para qualquer ajuda.
"O cuidado com as avaliações, aqui, é redobrado. Muitas mulheres vêm para cá por falta de opção. Sem que exista uma decisão madura e consciente de levar a denúncia até o fim. Elas têm dúvidas. Elas são dúvidas. O tempo todo. Mecanismos instáveis prontos para explodir ou implodir. E para enganar. É o que elas sabem fazer. É como aprenderam a sobreviver. [...] O que posso oferecer a cada uma é ajuda. Questionários, análises, conversas. A montagem de um quebra-cabeças que muitas delas nem percebem. Eu sou um lugar para onde fugir. Uma pessoa de quem não precisam gostar, mas com quem podem contar para falar verdades, mentiras, incertezas, medos, negações. Alguém que as orienta e defende, a elas e a seus filhos, sem que precisem sequer agradecer. E que não pode julgá-las. Pelo menos, não externamente. Eu sou a que escuta segredos. Esse é o meu papel." (p. 39)
Vivenciando um presente sem esperanças, Beatriz se entrega a um processo de autodestruição com base no sexo compulsivo e consumo de drogas e, neste mergulho sem volta no abismo em que se transformou a sua vida depois da morte da filha, apesar de pertencer a uma parcela privilegiada da sociedade, com mais chances de proteção, as consequências de seu comportamento fazem com que a violência que ela costuma testemunhar em seu trabalho passe a ameaçar a sua vida particular. Adicionalmente, Inserções retrospectivas ao longo da narrativa, revelam ao leitor que existem traumas familiares também no passado de Beatriz, por meio de um pai controlador e agressivo, assim como uma mãe submissa.

Um dos casos mais trágicos que Beatriz presencia no abrigo em que trabalha é o de dois irmãos, Antônio e Cícero, 15 e 13 anos, acolhidos pelo programa de proteção a crianças e adolescentes ameaçados de morte, depois de terem sido submetidos por algum tempo a uma prática de prostituição infantil pelos próprios pais. O ódio gerado nessas crianças pelos maus tratos e abusos faz com que o mais velho deles planeje o assassinato da mãe. Afinal, "Antônio é só mais um animal parido", que outro destino ele poderia almejar.
"Antônio atirou na mãe. Eu sei que foi ele. O advogado também sabe. Mas não é isso que os advogados fazem? Mentem, mentem, mentem. Com muita seriedade. Convencem. Tudo o mais é interpretação. A minha é de que Antônio nunca nasceu. Gente nasce de mãe e de pai, não de esperma e de óvulo. Cópula, concepção, gestação é ciclo de bicho. No de gente, entra afeto. É preciso ser sonhado, esperado, idealizado, amado para se nascer. Antônio é só mais um animal parido. Eu sempre reconheço os afins." (p. 132)
Um romance tecnicamente muito bem escrito que conduz o leitor ao entendimento das ações da protagonista pelo que ela revela e também tenta esconder, como nas partes em que reflete sobre as consultas com a analista, lembrem-se de que Beatriz é uma narradora pouco confiável. Na rotina de desesperança e violência em que se transformou a sua vida, existirá algum futuro ou, assim como para as mulheres e crianças do abrigo, não há saída possível?

Comentários

sonia disse…
Ufa!!! Não sei se aguentaria o tranco ao ler esse livro. Considero que um texto desses é mais uma catarse para quem escreve e um pouco menos para quem o lê. É preciso cuidado ao decidir por essa leitura. Quem ainda não tiver virado a página da infância e juventude pode ou não ter a ajuda de que necessita. Na velhice, bem....na velhice tudo é menos nocivo e serve como um pouco mais de alívio por se ter chegado até ela!

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