Carina S. Gonçalves - Nada Acontece
Carina S. Gonçalves - Nada Acontece - Editora Urutau - 70 Páginas - Lançamento: 01/12/2018.
Tem vezes que nada acontece na minha vida e aposto como é assim também com você, caro leitor. Nem sempre os nossos dias são feitos de grandes vitórias ou mesmo estrondosas derrotas, guinadas do destino ou epifanias surpreendentes. Para dizer a verdade, quase nunca é assim, na maior parte do tempo permanecemos encalhados em atividades repetitivas, lutando contra prazos ou postergando decisões. Contudo, quem sabe a vida aconteça justamente em torno desse vazio, nas miudezas do cotidiano, enquanto estamos distraídos sonhando com entrevistas imaginárias que daremos quando, finalmente, publicarmos aquele livro importante e genial que escreveremos em algum outro dia, quando não estivermos tão ocupados.
Nada Acontece é uma coletânea de poemas que estavam escondidos nos locais menos prováveis: na calça com um furo na bunda, no buraco da parede ou no cachorro vira-lata, sozinho na rua. Cuidado leitor, a poesia de Carina Gonçalves parece simples, mas isso porque é feita de silêncios e sugestões, sempre com um humor sutil que se transforma em refinada ironia. Um livro para ler com atenção, sentir e pensar. O almoço, por exemplo, atividade tão banalizada é representada no poema por ações não exercidas por pessoas, mas sim por objetos que desaparecem aos poucos, ficando apenas a música dos verbos, quem nunca vivenciou uma cena assim, comum como é toda família.
Nada Acontece é uma coletânea de poemas que estavam escondidos nos locais menos prováveis: na calça com um furo na bunda, no buraco da parede ou no cachorro vira-lata, sozinho na rua. Cuidado leitor, a poesia de Carina Gonçalves parece simples, mas isso porque é feita de silêncios e sugestões, sempre com um humor sutil que se transforma em refinada ironia. Um livro para ler com atenção, sentir e pensar. O almoço, por exemplo, atividade tão banalizada é representada no poema por ações não exercidas por pessoas, mas sim por objetos que desaparecem aos poucos, ficando apenas a música dos verbos, quem nunca vivenciou uma cena assim, comum como é toda família.
Concerto para almoço ordinário
de família ordinária 4'33''
o telejornal chia
garfo tilinta no prato de porcelana
boca assopra
jarra enche o copo
suco de laranja desce pela garganta
copo vazio toca a mesa
tosse
passa o guardanapo?
faca serra o pão
faca serra o pernil
garfo tilinta no prato
suco desce pela garganta
copo metade vazio toca a mesa
saleiro chacoalha arroz cru e sal
colherinha de alumínio topa o vidro
do copo cheio de suco
pra que tanto açúcar?
cadeira arranha o chão de porcelanato
suco desce pela garganta
garfo tilinta
faca serra
cadeira arranha o chão
suco desce
copo enche
colherinha topa
cadeira arranha
tosse
arranha
desce
tilinta
serra
chacoalha
arranha
desce
enche
topa
arranha
tosse
chia
Na imaginação da poeta, até mesmo aquela desagradável e involuntária baba que escorre de nossa boca enquanto dormimos (e nada acontece) pode virar matéria-prima para mais um poema. É interessante como, mesmo com versos curtos, existe sempre uma propriedade narrativa e visual nos textos, uma característica do trabalho em prosa, aqui a serviço da poesia.
reserva mineral
o mundo se acaba
e eu deitada
babando
de bruços
de pernas
de braços
esticados
de olhos
semiabertos
em cima do globo
à deriva
minha baba
desenha
uma ilha
O meu poema preferido é o que empresta o título ao livro e onde, definitivamente, o teor narrativo domina a construção, quase um texto em prosa; e algo terrível acontece, ou não? Nada é que parece neste livro, ele nos surpreende com lindas divagações: "tudo é novidade / em um cão / que não tem raça" ou "não há nada / mais fictício do que / nomes reais".
nada acontece
você tem um plano
sair do trabalho
pegar o ônibus
o tempo cronometrado
chegar em casa
alimentar sua cachorra
passear com ela
estar no aniversário
às oito
vai dar certo
no caminho
você pensa
o quanto a sua vida
é ordinária
nada acontece
e fantasia
um dia
dar entrevistas
como escritora
chega até a imaginar
as perguntas
como as de política
vai dizer para o apresentador
que pergunta reducionista!
e que você é sempre a favor
das minorias
o ônibus está a dois pontos
antes do final
o seu destino
e você pensa em escrever
uma epifania
se desanima
porque nunca
vai conseguir
tem raiva de si
por ter achado que um dia seria
poeta
desce do ônibus
o mesmo trajeto
passa na frente do bar
atravessa a rua
a intuição suspeita
em cima da hora
que é um assalto
um rapaz de boné
puxa sua bolsa
e pela primeira vez
você vê
uma arma
apontada para si
fecha os olhos
como em um carro caindo
de um penhasco
para não morrer
com os olhos abertos
e sente a bala
nas suas costas
perfurando
o poste de luz
o muro de concreto
as colagens na parede
os vasos de suculenta
as fotos imantadas na geladeira
você volta para casa
abraça a cachorra
que espera ser alimentada
só existem você
e aquele animal
que também chora
sufocado pelos seus braços
você escreve para ver se passa
nada acontece
Sobre a autora: Carina Gonçalves nasceu e vive em Belo Horizonte. É formada em Publicidade e Propaganda, pós-graduada em Processos da Imagem e da Palavra na PUC-MG. Trabalha como redatora free-lancer e ministra oficinas de escrita criativa. É coautora (com Luciana Santos Gonçalves) do livro Seu Vicente não existe, publicado pelo selo Leme, em 2017. Este é seu livro de estreia na poesia, lançado no final de 2018 pela Editora Urutau.
Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Nada Acontece de Carina S. Gonçalves
Comentários