Cinthia Kriemler - Tudo que morde pede socorro

Literatura brasileira contemporânea
Cinthia Kriemler - Tudo que morde pede socorro - Editora Patuá - 164 Páginas
Ilustração, Projeto Gráfico e Diagramação de Leonardo Mathias - Lançamento: 2019.

Em seu mais recente lançamento, Cinthia Kriemler volta a escrever sobre situações de abuso sexual e violência doméstica em uma sociedade que, por egoísmo, comodismo ou simplesmente alienação, prefere ignorar os pedidos de socorro das vítimas, submetidas a relacionamentos que se assemelham a prisões; convivências nas quais a tradição patriarcal perpetua modelos retrógrados de comportamento feminino onde até mesmo a maternidade e as tarefas domésticas servem algumas vezes como grilhões. Na verdade, em Tudo que morde pede socorro a autora avança ainda mais nos abismos da intolerância e crueldade, revelando diferentes aspectos da opressão no tempo e no espaço. Seja na pequena cidade de Baependi no sul de Minas Gerais ou na província de Ghazni no Afeganistão, no Brasil do final do século XIX ou em nossa época, a escravidão, explícita ou implícita, continua sendo uma demonstração vergonhosa do que existe de mais perverso e bárbaro no comportamento humano.

Após ler o capítulo de abertura, não consegui evitar o arrepio de emoção e fiquei imaginando e avaliando – vício irritante de todo resenhista – como a autora vai conseguir manter o mesmo tom visceral ao longo de todo o romance? A analogia entre a armadilha velha e enferrujada que prende a pata da presa indefesa e a situação vivenciada por uma vítima de relação abusiva no próprio lar é tão brilhante quanto dolorosa. A importante função de denúncia é fundamental sem dúvida, mas é impossível não se encantar com a beleza da narrativa por si só. Como bem destacou Alberto Bresciani na apresentação, citando Nabokov e Antonio Candido, denunciar as injustiças na sociedade é um papel da literatura, porém sempre mantendo o compromisso com a eficácia estética. O trecho abaixo representa muito bem a síntese desse pensamento.
"Não. Palavra de alforria. Palavra de basta. Monossílabo de corte. Desarme de armadilhas que decepam muito além das patas. Ardilosas. Sanguinárias. Ceifadoras. Cessando o livre-arbítrio pela artimanha da emboscada. Da dissimulação. A camuflagem impedindo a visão do risco. A pisada em falso. A mordida dos dentes metálicos massacrando ossos, cartilagens. O urro. A fúria. O animal escravizado que não desiste sem tentativa. Que se debate enlouquecido. Que se exausta. Que agoniza, incapaz do movimento, do alimento, da fuga. Que fareja a podridão da própria morte. [...] Decepada. Atordoada. Porque ela agora é lentidão. Equilibra-se. Desequilibra-se. Arrasta-se. Joga-se no mato alto para se esconder dos predadores. Porque ela agora é caça. Sabe do seu exílio. Sabe dos dias sem trégua. Sem corridas. Sem saltos. E da morte, rompimento de todos os grilhões. Palavra de fim. / E do não. Palavra de escolha." (pp. 15 e 16)
"Não" é uma palavra simples, pode ser uma "palavra de fim" ou uma "palavra de escolha", contudo, existem poucas opções em uma vida de dominação e submissão, quando o ato da fuga parece ser a única saída como nos alerta a autora: "Fugir nem sempre é covardia. Às vezes, é o que nos distancia da insanidade." Leonora, personagem principal da trama, é uma sobrevivente de uma história de violência doméstica. Depois de um acidente de carro que a fez perder o braço esquerdo (novamente a analogia com a armadilha), ela retorna à cidade onde nasceu, Baependi no interior de Minas Gerais, para trabalhar na tradução do livro Ainsi soit-elle de Benoîte Groult (1920-2016), jornalista, escritora e ativista feminista francesa, uma oportunidade para que algumas importantes citações sejam inseridas no romance, como por exemplo a surpreendente descoberta de que mulheres possam ser antifeministas, constituindo assim uma "misoginia suplementar" ao acreditarem que "foram feitas para as suas cadeias". 

Ao buscar o isolamento em uma cidade pequena, tentando cuidar das feridas do corpo e da alma, Leonora acaba se envolvendo com a situação familiar de Francisca, uma moça residente na própria localidade que ela contratou como empregada. Quando Francisca falta ao trabalho sem maiores explicações, fica claro que ela "tem uns probleminhas" nas ocasiões frequentes em que "o marido bebe e fica violento", um desses problemas é a gravidez indesejada da filha adolescente de 15 anos, Paula Regina, mais uma vítima de abuso sexual doméstico. Será que a mãe sabe o que está acontecendo em sua própria casa ou prefere não enxergar? De qualquer forma, interromper a gravidez não é opção para uma família religiosa, mesmo considerando que o aborto seja feito em decorrência de um estupro e incesto. A sentença cruel já foi decretada, a menina não existe mais, agora é só uma mulher destruída e sem futuro.
"[...] Uma sociedade estranha. Que não se compadece das meninas que engravidam de estupros e de incestos. Meninas que não quiseram, não pediram, não aceitaram ser violadas. Uma sociedade que fala em fardo, destino, cruz, e outras palavras de submissão. Mas que não se preocupa com os futuros incertos das crianças criadas sem referências identitárias, como será o caso do filho-irmão de Paula Regina. Crianças às quais não se vai conseguir explicar a atrocidade de um incesto, mas que terão que conviver com o estigma e com as sequelas da consanguinidade, num prolongamento sádico e impiedoso daquilo que sempre será tragédia, não importa sob que aspectos se analise." (pp. 63 e 64)
Nem sempre as mulheres são o único alvo da dominação. Em uma dramática luta pela sobrevivência, um jovem foi encontrado desmaiado numa estrada do Afeganistão por um funcionário da Cruz Vermelha Internacional, depois de ter sido mantido em cativeiro por 12 anos, ele acabou sendo salvo por um médico brasileiro descendente de libaneses que o trouxe para o Brasil onde foi adotado. Leonora reconhece semelhanças entre ela e o jovem refugiado na busca pela improvável liberdade: "Assim como eu, Fazal também precisa de uma vida tranquila. Temos ambos, os nossos sofrimentos, os nossos traumas, os nossos pânicos, os nossos segredos. O que nos diferencia é que para ele a violência veio pelo estupro. Num país que ignora a liberdade. Para mim, pela surra. Num país que finge a liberdade."
"Fazal Ahman Taraki nasceu em 18 de fevereiro de 1996, na zona rural da cidade de Ghazni, província de Ghazni, no Afeganistão, sob o regime dos talibãs. Quinto filho de Rashid Taraki, pequeno agricultor. Em 2002, aos seis anos de idade, foi comprado por um comandante da polícia afegã e transformado num 'bacha bazi', um menino para brincar. Pedofilia. Que é proibida no Afeganistão. Mas isso pouco importa. Lá, os homens e suas fortunas, os homens e seu poder é que determinam o cumprimento ou não das leis. E todos fazem vista grossa. O menino comprado ou sequestrado se torna um escravizado sexual. Vestido de mulher, com o rosto pintado, é obrigado a dançar para o seu senhor. E em seguida é estuprado de forma brutal. Aos 18 anos, ferido, confuso e debilitado, é devolvido à casa de seus pais, onde é rechaçado pela mesma família que o vendeu ou que não foi capaz de impedir o seu sequestro. A prostituição é o que lhe resta. Mas a prostituição é proibida e punida com a morte no Afeganistão. 'Dead end'" (pp. 56 e 57)
Muitos outros elementos e personagens, ficcionais e históricas, são utilizadas por Cinthia Kriemler para compor o painel do romance, o misticismo sempre presente na cultura do nosso país, representado por Francisca de Paula de Jesus (1810-1895), conhecida popularmente como Nhá Chica, uma leiga considerada beata pela Igreja Católica em 2013, o diário de Anna Bonifacio, antepassada de Francisca, uma escrava alforriada pouco antes da Lei Áurea mas que foi perseguida e sofreu todo tipo de violência até que, juntamente com outras escravas fugitivas, encontrou abrigo em uma fazenda, no sul de Minas Gerais.

Entre tantas vozes diferentes, de resistência ou de submissão, Leonora tenta recompor a sua dignidade e encontrar um caminho que permita conhecer quem ela realmente é ou no que se tornou. Aos poucos vão sendo revelados os detalhes da doentia relação de Leonora e Mateus  um homem que só pensava no poder de intimidação e manipulação – desde os primeiros empurrões, as marcas roxas pelo corpo, o absurdo sentimento que a vítima tem de ser a culpada pelas agressões sofridas até chegar ao acidente que a mutilou e libertou.
"Eu sou um desmoronamento. Lama e pedras servindo de lápide a um túmulo gigantesco que soterra gente e bichos. Silêncio. Ou quase. A respiração ofegante dos cães insistindo na busca. Um ruído. É tudo o que se espera dos destroços. Um indício de vida. Qualquer sobrevivência que devolva um pouco de fé ao desespero. Qualquer ressurreição. / Tenho vasculhado os meus escombros procurando por mim. Mas o que encontro são outros corpos que me pedem ajuda para não morrer. Não consigo. Não sei o que fazer com eles. Sobreviver tem devorado o que resta da minha compaixão. Ao contrário dos cães, eu bato em retirada das ruínas. Os sons sob a terra me empurram para a fuga. Tenho medo de me encontrar e ser o que eu penso de mim. E também tenho medo de não ser." (p. 141)
Voltando ao início da resenha, constato que Cinthia Kriemler conseguiu manter a alta tensão narrativa do início ao final de um romance que guarda um final surpreendente e do qual não conseguimos permanecer impassíveis. Aquele tipo de livro que incomoda e deixa marcas, como deve ser o objetivo de toda grande obra de literatura, concluindo com uma importante reflexão sobre dominação e submissão de qualquer tipo: "Escravidão. Anulação do ser."

Literatura contemporânea brasileiraSobre a autora: Cinthia Kriemler é romancista, contista e poeta. Publicou, pela Editora Patuá: Exercício de leitura de mulheres loucas (Poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017 - Leia aqui resenha do Mundo de K), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Na escuridão não existe cor-de-rosa (Conto, 2015), semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Contos, 2014) e Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz (Editora Penalux, 2017). Participa regularmente das seguintes revistas digitais e sites especializados: GuetoInComunidade, SAMIZDAT, Jornal ORelevo, Mallarmargens, Germina, Escritoras suicidas, Diversos afins, Philos e Ruído Manifesto.

Comentários

sonia disse…
Caro K,

para poder ler esse livro eu precisaria ter nascido homem, ou mulher protegida durante a infância. Não é meu caso. Filha de pai violento e carrasco, fui vítima de muita violência doméstica, o que me fragilizou durante toda a vida. Hoje, ao conseguir me distanciar um pouco (porque totalmente nunca é possível) de todo o drama vivido, só posso me solidarizar com os milhões de mulheres que aturam toda essa carga pesada. Talvez por isso somos feitas de um material resistente, apesar de delicado....

Abraço,
S.
Alexandre Kovacs disse…
Sonia, entendo a sua colocação, realmente é um livro forte e que me provoca um sentimento de vergonha de alguns representantes do gênero masculino. Gostei da sua definição de mulher ao utilizar dois adjetivos aparentemente antagônicos: "feitas de um material resistente, apesar de delicado..."! Abs
Cinthia Kriemler disse…
Sonia, receba toda a minha solidariedade e respeito. E que, mesmo lentamente e aos poucos, você consiga se resgatar de tanto sofrimento! Grande beijo. Cinthia Kriemler.
sonia disse…
Cinthia, muito grata por seu carinho. Felizmente consegui me distanciar dos fatos que me fizeram tanto mal, apenas porque também tive momentos de intensa alegria. Minha mãe compensou (apesar de depressiva) tudo o que me faltava. E avós e tia também. Fui vivendo e hoje aos 73 anos posso dizer que valeu a pena. Tenho dois filhos maravilhosos e duas cachorrinhas que adoro. Fazendo uma retrospectiva posso avaliar que minha vida foi muito intensa. E tudo junto acabou por me trazer até aqui cheia de gratidão!
Beijos,
Sônia

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