Ricardo Terto - Os dias antes de nenhum
Ricardo Terto - Os dias antes de nenhum - Editora Patuá - 104 Páginas - Capa, projeto gráfico e diagramação: Rodrigo Sommer - Lançamento: 2019.
Os 13 contos reunidos nesta antologia de Ricardo Terto obedecem à estrutura que foi consagrada por alguns mestres do gênero, ou seja, pequena extensão dos textos, narrados em primeira ou terceira pessoa, conquistando a atenção do leitor desde o início e finais surpreendentes. Contudo, seguem também uma orientação mais subjetiva que se torna clara à medida que avançamos na leitura: uma certa dificuldade de adaptação dos protagonistas aos padrões de conduta impostos pela sociedade, deslocados do meio em que vivem e envolvidos em atividades profissionais com as quais não se identificam, os personagens, em sua fragilidade, provocam a identificação do leitor e o conflito na trama, combustível da boa literatura.
Seja o vigilante noturno Durval, que acompanha uma área conhecida pelo consumo de crack, prostituição e violência, "protegendo o capitalismo dos seus próprios zumbis", (Pornô, p. 10), ou o salva-vidas que tem uma visão muito particular da sua profissão: "Eu não salvo vidas, meu ofício é prolongar a existência de pessoas estúpidas" (Mancha, p.69) e até mesmo o Capitão Nelson que navega com uma "bússola imprestável" para transportar passageiros clandestinamente (Horizonte, p.77), todos conduzem suas atividades em meio ao absurdo de uma existência orientada pelas exigências de mercado e controlada por um Estado omisso.
Seja o vigilante noturno Durval, que acompanha uma área conhecida pelo consumo de crack, prostituição e violência, "protegendo o capitalismo dos seus próprios zumbis", (Pornô, p. 10), ou o salva-vidas que tem uma visão muito particular da sua profissão: "Eu não salvo vidas, meu ofício é prolongar a existência de pessoas estúpidas" (Mancha, p.69) e até mesmo o Capitão Nelson que navega com uma "bússola imprestável" para transportar passageiros clandestinamente (Horizonte, p.77), todos conduzem suas atividades em meio ao absurdo de uma existência orientada pelas exigências de mercado e controlada por um Estado omisso.
Por sinal, um dos melhores contos do livro é o que tem como argumento um Estado que se transforma em regime político totalitário, no qual a prática de fuzilamento é substituída por um procedimento largamente mais eficiente em termos econômicos, o tradicional apedrejamento. A execução é conduzida por um meticuloso economista que explica em detalhes para o condenado, que está prestes a ser apedrejado, as bases legais e técnicas do todo o processo. Este é um ótimo exemplo do estilo de Ricardo Terto que desenvolve a sua distopia com ironia e humor ácido em direção ao final inteligente que, mais uma vez, irá surpreender o leitor.
"O senhor deve estar se perguntando como irá morrer hoje, disse o economista. [...] Em dez minutos, aqueles doze cavalheiros designados pelo Conselho de Execuções do Ministério da Segurança irão lhe atirar oito pedras cada um, totalizando noventa e seis pedras que irão lhe atingir, levando o senhor a óbito. [...] Quero acalmá-lo, é muito provável que o senhor não sentirá todos os noventa e seis golpes, pois o que nossa experiência diz é que a perda de consciência acontece por volta da décima quinta pedrada, quando muito. Porém, conforme o artigo 201 do Estatuto das Punições de Máximo Rigor, devemos chamar cidadãos arbitrariamente para executar sua sentença. Isso nos coloca à mercê de convocarmos gente inapta para o serviço, tais como raquíticos até pessoas com má formação ou cegueira parcial, acredita? Pois bem, não concordo com essa parte do Estatuto, mas sou apenas um economista, não um político. Minha função é somente calcular o melhor processo executório sem onerar demasiadamente o Estado. Veja bem, com noventa e seis pedras desferidas, a chance de menos que quinze golpes lhe atingirem é menor do que um por cento." (pp.47-8) - Trecho do conto Das vantagens econômicas do apedrejamento.Alguns contos têm uma abordagem francamente surrealista como Falta injustificada, no qual o protagonista é curado gradativamente de todas as suas "renúncias, frustrações e antipatias" com a ajuda de um beija-flor que enfiou-se no seu ouvido enquanto dormia (ler o trecho deste conto reproduzido abaixo). A insólita melhora no seu estado existencial, contrariamente ao que era de se esperar, não resulta em satisfação para Augusto que procura imediatamente auxílio médico para se ivrar do pássaro e retornar ao seu estado de infelicidade natural.
"Tendo Augusto dorrmido de janela aberta, pela manhã, pôde o pequeno beija-flor entrar em seu quarto e, num comportamento absolutamente espetacular para um pássaro, enfiar-se no ouvido do homem que dormia. / Ao despertar, não se viu abatido e indiferente como sempre. Tal revigoramento lhe causou um enorme desconforto. / Convicto de sua infelicidade, checou se todo o rancor e a decepção se mantinham em sua memória. Estavam, mas algo parecia acontecer ali, no momento em que buscava suas recordações. / A cada minuto, renúncias, frustraçoes e antipatias, até então enraizadas, se desfaziam como espuma de leite matinal. / Indignado pela ameaça de se reconhecer em boa paz, o homem reportou a situação a seu chefe e, dispensado dos ofícios do dia, tratou de procurar urgentemente um médico." (p. 57) - Trecho do conto Falta injustificada.No conto final, que empresta o título ao livro, o autor imagina um final de mundo apocalíptico, descrevendo a paralisação gradual de todas as atividades humanas, enquanto as pessoas parecem não perceber a tragédia que se aproxima. Alguns personagens das narrativas anteriores voltam a ser citados em um contexto mais amplo. Fiquei com a sensação assustadora de que as semelhanças com a nossa sociedade atual nos mostram como as distopias mais terríveis podem se transformar, repentinamente, em ingênuos contos de fadas.
Sobre o autor (nas palavras do próprio):
Nasci na periferia de São Paulo. Segundo minha mãe, vim sem espernear. Já meu primeiro livro, vindo de uma relação amorosa violenta com a cidade, veio berrando e soltando catarro. Sobreviveu e agora já se perde sozinho. O segundo é esse, nasceu quase distraído de tão devagar, mas está aí, tossindo, curioso. Veio do banho sem chuveiro das fábricas Maluf e dos quartos sem janela, com vista só pra cozinha. A vida é assim, nunca escolhemos a história que nos precede, mas decidimos a história que vamos contar. Minha primeira viagem de avião foi aos 32 anos, meu primeiro mar de nuvens. Antes, já tinha sido, eu mesmo, nuvem de cartolina na apresentação da escolinha, saindo do jardim de infância. É na diferença entre ser nuvem de cartolina e ver mar de nuvem que tento encontrar a minha literatura.
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