Guille Thomazi - Segure mnha mão

Literatura brasileira contemporânea
Guille Thomazi - Segure minha mão - Editora Patuá - 248 Páginas - Projeto gráfico e Diagramação de Alessandro Romio - Lançamento: 2020.

O texto de apresentação de Daniel Galera, na orelha do livro, dá uma boa pista do que iremos encontrar neste segundo romance de Guille Thomazi: "Há ecos do sulismo gótico de William Faulkner e Cormac McCarthy aqui. Mas Thomazi é original em tentar levar a poética da brutalidade encontrada nesses autores, a uma espécie de paroxismo estético, no qual a técnica e o engenho humano se contrapõem à essência selvagem e à carne mortal dos seres vivos. [...]". E, realmente, constatamos que em Segure minha mão, o autor vai ainda mais além na estética da violência, construindo uma espécie de romance épico no qual o seu protagonista, Olek, um herói clássico, embora gago e epilético, mantém as suas virtudes morais, apesar do meio inóspito em que sobrevive, tentando superar as circunstâncias adversas, tanto no enfrentamento da natureza selvagem quanto nos períodos de guerra.

O pano de fundo histórico é bastante incomum para os leitores brasileiros, a guerra polonesa-soviética no início do século XX, mais especificamente as batalhas pela retomada de Kiev, hoje capital da Ucrânia, assim como as ações navais na cidade portuária de Sebastopol, na Criméia. Na verdade, não há uma preocupação do autor em reconstituir a história "oficial", mas sim os efeitos da loucura dos conflitos bélicos na vida dos personagens e na ficção que está sendo contada. 

O romance tem início em uma cabana nas pradarias desertas a noroeste de Kiev, onde "os lobos uivam e outras criaturas se abrigam"A mãe, Ekaterina, depois de um difícil parto, atendida apenas pelo marido Olek e pela velha Hinde, dá à luz duas crianças, sendo que uma nasce morta e a outra sobrevive, mas com uma rara anomalia genética, o "nanismo primordial" que provoca deficiência no crescimento. Ekaterina foge após algum tempo de recuperação do parto traumático e o apaixonado Olek dá início a uma busca obsessiva que irá durar muitos anos. Instruído por um curandeiro local, ele acredita que a cura para a pequena Dannika, a filha sobrevivente que foi alimentada por meio do leite de uma loba capturada, depende da mãe. 

"Deita-se ao lado da carcaça, permanece imóvel, esperando. Os lobos são desconfiados e, por extensão, pacientes. Com o líder morto, não há organização na abordagem. Aproximam-se para vasculhar a carcaça do cavalo; Olek continua sem se mover, e não o enxergam, apesar de haver resquícios de seu cheiro no ar. E no meio de tantos animais mortos, os vivos estão mais ariscos. Quando Olek, espiando pelo buraco, em sua cobertura de couro, vê o primeiro lobo subindo na carcaça, vários outros já estão ali. Aproximaram-se abaixados, camuflados pelo capim. Olek aperta na mão o cano da espingarda, veriifca a faca quebrada, fincada no chão, perto de seu joelho. Segura a cabeça do fêmur na outra mão, deixando o osso ao longo de seu antebraço, protegendo o punho. Vê, então, uma fêmea grande, com as mamas aparecendo, escapando por entre os pelos; ela cheira e então abocanha alguma coisa, pela cavidade abdominal do cavalo." (p. 33)

Lutando com lobos famintos ou enfrentando homens desesperados, Olek viajará por regiões desertas e cidades destruídas, enfrentando muitos perigos em nome de sua família, sofrendo agressões e ferimentos de todo tipo em uma sequência interminável de eventos brutais que parecem assumir as proporções de um martírio religioso, pelo efeito de repetição e superação do protagonista. Antes de cada partida, ele prepara a casa para a sua ausência, deixando a velha Hinde e a pequena Dannika com provisões e lenha. Em um desses períodos de afastamento, Olek é capturado e levado para uma prisão medieval búlgara, próxima da fronteira com a Turquia. Os maus tratos e a violência no confinamento podem ser ainda piores do que a própria guerra.

"Na cela, todos sentados em silêncio, com o vapor da refeição subindo ao rosto, observam seus movimentos. Ele caminha até o fundo, onde estão sentados os turcos, junto à parede, deposita a tigela no chão, em frente ao imenso urso peludo que para de comer e levanta os olhos, mostrando os dentes. Ainda que faltasse a Olek velocidade e fator surpresa, há força, porém. A perna ferida já recuperou a firmeza para sustentar o corpo sozinha, e o turco não consegue proteger o rosto do chute que o atinge. Dentes, mandíbula e, no gesto defensivo, dedos da mão quebrados. As lacerações internas na boca produzindo sangue em abundância, que o turco vomita, com pedaços de dentes. Os guardas são forçados a permitir que dois turcos carreguem o companheiro a uma ala médica. Olek engole a refeição enquanto espera que venham buscá-lo. Ele acaba enfiado na solitária, e começa a se preocupar com retaliação, quando sair de lá. Mas enquanto o turco se restabelece e trama vingança, alguém aproveita a oprtunidade para vingar-se também, de agressões anteriores e, encontrando-o enfraquecido, mata-o na enfermaria." (p. 70)

Em outra de suas longas incursões em busca da mulher, Olek resgata Lyuben um menino búlgaro ferido que ele encontra em uma pilha de cadáveres, com um "ferimento recente que lhe marca uma grande parcela do rosto, a pálpebra côncava sobre um olho inexistente". Ele consegue convencer uma oficial soviética a aceitá-lo em um navio-hospital onde tratam do pequeno corpo coberto de cortes, abrasões, queimaduras e uma amputação traumática da mão esquerda que, até então, estava escondida pela manga do casaco de adulto que o menino vestia. Agora, Lyuben faz parte da família também, aquele homem imenso, que ele acabou de conhecer, não o abandonará jamais.

A técnica narrativa de Thomazi é sempre conduzida com base na terceira pessoa e utilizando uma sequência de sentenças curtas, formando uma composição de estilo cinematográfico. As pessoas não conseguem entender esse estranho homem tomado por ferimentos e cicatrizes que, em meio à destruição, pergunta por uma mulher que fugiu de casa, mas Olek descobriu há algum tempo que ele não tem outra alternativa, precisa continuar.

"Soldados russos avançam, caminhando sobre o gelo do rio; alguns fazem mira e disparam. Olek corre pelo meio da rua, o blindado acelera às suas costas, dispara. O deslocamento de ar do projétil lhe move o cabelo, as pontas dos fios enrolam com o calor. A orelha queima com as partículas em combustão, a parte lateral da barba crepita. Uma fachada termina de desmoronar, no momento em que Olek passa. Ouve uma explosão dentro de uma casa, logo atrás de si. O blindado dispara de novo, uma parede explode poucos metros adiante, fragmentos espalham-se na rua, tijolos e pedregulhos voam em sua direção. Olek protege-se com o braço na frente do rosto, não para de correr. Vê o carro do Major caído de lado, inclinando-se devagar e tombando com as rodas para cima. Vê um soldado com a espinha quebrada, perto do calçamento, em seus estertores finais. O carro está entre a rua e o calçamento que dá para o rio, próximo de uma estaca da balaustrada que não existe mais. Pouco à frente, a queda de quatro metros dentro do Dnieper. Na rua, um sargento com a cabeça sangrando, um braço quebrado, consegue sentar-se escorado no carro. Saca a pistola e dispara contra Olek, que se joga para o lado e rola, quase caindo no rio. O sargento continua atirando, agora contra o blindado, que avança. Olek percebe o Major se arrastar para trás do automóvel. Balas de fuzil atigem a lataria do veículo, a infantaria russa surge por trás do blindado." (p. 172)

Sobre o autor: Guille Thomazi (em 1986) nasceu em Lages (Santa Catarina) e depois de girar pelo mundo pra lá voltou. Possui formação acadêmica em Cinema e Vídeo pela UNISUL. É empresário do ramo de biocombustíveis florestais renováveis. Estudioso diletante de História e Humanidades. Seu primeiro livro, Gado Novo (7 Letras, 2013), foi roteirizado pelo diretor Beto Brant, Marçal Aquino e o próprio autor, para uma adaptação cinematográfica.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Segure minha mão de Guille Thomazi 

Comentários

pausado tempo disse…
Muito obrigada pela leitura e resenha. Compartilharemos em nossas redes! Forte abraço, obrigada pelo trabalho em prol da Literatura.
Alexandre Kovacs disse…
pausa do tempo / Valéria, o prazer da leitura foi todo meu! Obrigado pela visita e comentário. Grande abraço.

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