Jeferson Tenório - O avesso da pele
Com rara habilidade na condução das vozes narrativas, Jeferson Tenório surpreende em seu mais recente lançamento, tanto pela urgência do tema quanto pelo virtuosismo técnico da obra. O romance demonstra os mecanismos de perpetuação do racismo em nossa sociedade e os traumas causados pelo preconceito racial e exclusão social nas relações familiares e também na formação da identidade dos personagens. O narrador é Pedro, um estudante de arquitetura negro de 22 anos que tenta reconstituir a história do pai, Henrique, professor de literatura na rede pública, assassinado em um episódio de violência policial na cidade de Porto Alegre.
A engenhosa técnica de variação constante das vozes narrativas é muito bem executada pelo autor, que conduz a estrutura principal com base em um falso modo de segunda pesssoa, na forma de diálogos de inspiração shakesperiana entre Pedro e o pai morto, quando, na verdade, a narrativa é feita todo o tempo em primeira pessoa, mesmo quando se torna mais impessoal, em passagens nas quais é contada a história da mãe, Martha, assumindo a modalidade de terceira pessoa. No final, o recurso resulta em forte identificação do leitor que, independente da cor da própria pele, se emocionará com os personagens e suas dificuldades.
A história é um pouco autobiográfica já que Jeferson Tenório, assim como seu protagonista, também se mudou muito jovem do Rio de Janeiro para Porto Alegre, uma cidade em que o racismo é ainda mais explícito e vivenciou os mesmos preconceitos. O trabalho do escritor pode representar uma chance de redenção quando, por meio de seu narrador, ele afirma: "Não acho que devemos lidar apenas com a lógica dos fatos. Prefiro uma verdade inventada, capaz de me pôr de pé" ou nessa passagem que é uma máxima do trabalho de qualquer autor: "Não sei o que fazer com essa verdade inventada. É inventando que consigo ser honesto."
"[...] Eu queria apenas brincar e ser como os outros filhos eram com seus pais. No entanto, agora eu sei que você estava me preparando. Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos. Lembro que você fazia um grande esforço para ser entendido por mim. Eu era pequeno e talvez não tenha compreedido bem o que você queria dizer, mas a julgar pela água nos seus olhos, me pareceu importante." (p. 61)
O romance merece constar nas relações de melhores do ano, podendo ser considerado um marco na literatura brasileira contemporânea, vindo se juntar a outra obra importante neste contexto, Marrom e Amarelo de Paulo Scott (ler aqui resenha do Mundo de K). Talvez, um dia, não seja mais necessário aprender as regras de um manual de sobrevivência urbana para negros como no trecho abaixo. Até lá, vamos precisar de toda a ajuda possível para aprender que o que realmente importa está guardado em algum lugar no avesso da pele.
"[...] Você apenas pensou que havia um problema com você, mas talvez nunca tenha percebido que toda aquela vontade de ficar calado, que toda aquela vontade de permanecer quieto, pudesse ter a ver com a cor da sua pele. Que o seu receio de falar, seu receio de se expor, pudesse ter a ver com as orientações que você recebeu desde a infância: não chame a atenção dos brancos. Não fale alto em certos lugares, as pessoas se assustam quando um rapaz negro fala alto. Não ande por muito tempo atrás de uma pessoa branca, na rua. Não faça nenhum tipo de movimento brusco quando um policial te abordar. Nunca saia sem documentos. Não ande com quem não presta. Não seja um vagabundo, tenha sempre um emprego. Tudo isso passara anos reverberando em você. Como uma espécie de mantra. Um manual de sobrevivência. [...] (p. 88)
Sobre o autor: Jeferson Tenório nasceu no Rio de Janeiro, em 1977. Radicado em Porto Alegre, é doutorando em teoria literária pela PUC-RS. Estreou na literatura com o romance O beijo na parede (2013), eleito o Livro do Ano pela Associação Gaúcha de Escritores. Teve textos adaptados para o teatro e contos traduzidos para o inglês e o espanhol. É autor também do romance Estela sem Deus (2018).
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