Bruno Ribeiro - Como usar um pesadelo

Literatura brasileira contemporânea
Bruno Ribeiro - Como usar um pesadelo - Editora Caos & Letras - 148 Páginas - Projeto Gráfico:  Cristiano Silva - Arte de Capa: Eduardo Sabino - Lançamento: 2020.

Distopia é pouco para explicar o clima de surrealismo nonsense e a banalização da violência presentes nos contos (ou pesadelos) de Bruno Ribeiro. Com uma linguagem direta e diálogos precisos e velozes, que poderiam ser utilizados em roteiros cinematográficos, o autor coloca os seus personagens, normalmente com posturas politicamente incorretas, em situações de tensão e desespero; um estilo que poderia ser definido como uma mistura de Quentin Tarantino e Chuck Palahniuk. Contudo, a verdade é que a inspiração para muitos desses textos poderia ter vindo de qualquer noticiário, considerando o clima de barbárie que assola o país ultimamente.

O conto de abertura, A arte de morrer ou Marta Díptero Braquícero, premiado no "Brasil em Prosa", organizado pelo jornal O Globo e Amazon, é uma ótima introdução ao estilo do autor. O protagonista-narrador está em um restaurante e não demonstra a menor repulsa quando percebe uma mosca agonizante em seu prato com bife e batata frita, parecendo até mesmo admirá-la. Ele logo estabelece contato com a garçonete "gorda, cheia de espinha e depressiva" para compartilhar as suas impressões sobre o inseto; o conto avança até chegar a um final surpreendente. Destaquei alguns trechos, sem spoiler da conclusão, para dar uma ideia do ritmo narrativo.

"Uma mosca tomba no meu prato com bife e batata frita. Agoniza. Bactérias. Díptero braquícero da família Muscidae. Poucos milímetros de comprimento. Pego o garfo e cutuco o inseto, escuto um chiado, feito televisão fora do ar. Coloração cinza no tórax, abdômen amarelado. Duas asas, uma delas levemente rasgada. Por isso agoniza. Olhos grandes, espaçados, vermelhos. Continua chiando, morrendo. Empurro-a com a faca, corto um pedaço da carne, separo, finco o garfo em três batatas e depois na carne. Deixo cair uma gota do sangue do bife em cima da mosca. Engulo o alimento, mastigo, admiro o esforço do inseto em tentar sair da bolha marítima avermelhada. [...]" - Trecho de A arte de morrer ou Marta Díptero Braquícero (p. 15)

No conto Vem me ver, a protagonista divide um apartamento na Argentina com um misterioso companheiro que recebe mensalmente uma caixa branca com com uma tarja verde, envelhecida, com a inscrição em negrito: "Consumir até 15 dias" e vive recluso em seu próprio quarto. Excitada por uma mórbida curiosidade, depois de insistentes tentativas de seduzir o "esquisitão", andando seminua pela casa durante as madrugadas, ela parte para o ataque completamente embriagada. Trabalhando com as tensões conflitantes entre o erotismo e o terror, Bruno Ribeiro sabe muito bem como conduzir a curiosidade do leitor.

"Ao meu redor, no restaurante, não há ninguém. Exceto a garçonete gorda, cheia de espinha e depressiva. Não há ninguém. Reconheço os meus. É como uma doença visível, lepra. Os olhos caídos, o cheiro de cadáver, a expressão derrotista. Impossível não reconhecer uma depressão. Ela pergunta se eu quero mais alguma coisa. Vejo um crachá acima do seu peito gigante: Marta. 'Não, Marta, obrigado'. Ela dá meia volta, carregando a bunda disforme e sua tristeza de volta para o balcão. Marta vive aprisionada dentro de uma bolha marítima avermelhada. A diferença dela para a mosca é que o inseto luta bravamente para sair, Marta já desistiu. [...]"Continuação de A arte de morrer ou Marta Díptero Braquícero (p. 16)

Talvez seja o paraíso, narrado em terceira pessoa é o último conto do livro e o maior em extensão, praticamente uma novela, apresentando um protagonista com uma inexplicável compulsão pela violência em um mundo que ficou repentinamente deserto. Nesta autêntica distopia, viajando de cidade em cidade "o homem", como é simplesmente nomeado, encontra um menino de treze anos que passa a acompanhá-lo. Apesar da "vontade de cortar o garoto só para ver se ele sangraria", ele consegue resistir aos seus instintos, por algum tempo apenas. O homem precisa de carne, sangue, o pulsar de um corte, o fluir do vermelho, a obra-prima do grito.

"Afogou-se. Vive por comodidade. É mais fácil respirar do que morrer. Se matar dá trabalho. Já tentei quatro vezes. Dá trabalho. É preciso ter coragem para fazer bem feito. Decido tirar a mosca da bolha. O chiado retorna, ofegante, como se ela estivesse afundando em um mar profundo e de repente alguém a socorresse. Como mais um pedaço de carne. Mastigo quatro fritas. Não pisco os olhos: a mosca tenta voar, cai. Tenta de novo, cai. Está nas fritas, buscando fôlego para uma nova empreitada. [...]"Continuação de A arte de morrer ou Marta Díptero Braquícero (p. 16)

Sobre o autor: Bruno Ribeiro (1989) nasceu em Pouso Alegre-MG e é radicado em Campina Grande-PB. Escritor, tradutor e roteirista. Autor do livro de contos Arranhando Paredes, traduzido para o espanhol, e dos romances Febre de Enxofre, Glitter, Zumbis e Bartolomeu. Mestre em Escita Criativa pela Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF), de Buenos Aires, foi finalista da 1ª edição do Prêmio Kindle, Menção Honrosa do 1º Prêmio Mix Literário, e venceu os prêmios Brasil em Prosa, Todavia de Não Ficção e Machado Darkside.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Como usar um pesadelo de Bruno Ribeiro

Comentários

sonia disse…
Fiquei curiosa em saber o que leva uma pessoa a escrever nesse estilo...confesso que não sei. Faz bem para o escritor? Faz bem ao leitor? Não estou julgando nada. Só curiosa. Acho que não consigo definir se há um exorcismo no processo .

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