Marcos Alexandre Faber - A leitora de poesia
O lançamento de um romance epistolar é um fato raro em nossos dias, contudo existem muitos exemplos na literatura clássica, tais como: "Cartas Portuguesas" (1669), de Mariana Alcofarado ou Gabriel de Guilleragues, "Os Sofrimentos do Jovem Werther" (1774), de Goethe, "As Ligações Perigosas" (1782), de Choderlos de Laclos – e até mesmo em tempos mais recentes o estilo ainda permanece, apesar das cartas terem caído em desuso, como em "Precisamos Falar Sobre o Kevin" (2003), de Lionel Shriver ou "O Tigre Branco" (2008), de Aravind Adiga.
No entanto, o que torna "A leitora de poesia" um livro único é a utilização na narrativa de um elemento tão anacrônico quanto as cartas e que permeia a relação dos protagonistas Afonso e Maria Isabel: a própria poesia. Nas palavras de Afonso, o poeta: "são tão poucos os leitores de poesia, mais raros ainda do que os bons poetas! Aqueles que não buscam reconhecimento e nada pedem para si no panteão literário." Apesar da brutalização da nossa época, este pequeno público consumidor de versos ainda resiste e, certamente, se identificará com os personagens.
"Caro senhor Afonso, Gostaria de agradecer-lhe a carta e, ao mesmo tempo, revelar a minha mais completa surpresa por um acontecimento tão inusitado em minha vida. Não é frequente nós, leitores, recebermos letras dos poetas! / Das poucas vezes que saio de casa, costumo frequentar as livrarias e trazer o máximo de ficção e de poesia possível. Os poetas do mundo inteiro têm sido os meus amigos! Naquele dia, fui ao centro, comecei a folhear, ao acaso, vários livros de poemas e o seu me saltou aos olhos. / Diferente da prosa, podemos abrir um livro de poemas no meio e julgar, talvez de uma forma errada, todo o conteúdo por um único poema. O livro de poemas tem também este sabor da aventura, do jogo de cartas, abrir ou não na página certa. Toda a vez que abrimos um, como um crupiê, a sorte do poeta está lançada. Sei de poetas que ficaram célebres por um único poema! Mas é claro que há poetas de que gostamos de quase tudo. Estes são poetas de exceção. [...]" (p. 22)
A correspondência entre Afonso e Maria Isabel, no período de outubro de 1997 até dezembro de 2000, tem início quando ele descobre que uma mesma pessoa havia comprado dois livros após o dia do lançamento, uma pessoa que logo viria a descobrir, assim como ele, tinha "a alma envelhecida em barris de Carvalho". Ao longo do romance muitas referências à literatura, principalmente em língua portuguesa, fazem da leitura sempre um prazer, nomes como: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Florbela Espanca, entre outros.
"Cara Senhora Isabel de Mello, Saber que escrever para mim está lhe fazendo bem é um alento. As suas letras são, de longe, o ponto alto dos meus dias. Espero por elas com mais ansiedade do que pelos meus próprios poemas. [..] Ainda com relação à materialidade das coisas, tenho um sentimento que pode causar estranheza. Às vezes tenho medo de ficar rico ou célebre e, de repente, perder esta angústia poética que me leva adiante, até ao poema. Não saberia passar sem isso. Como poderia passar sem essa angústia que me forja a palavra? Não saberia viver sem esta melancolia que me chega, como um trem, todas as tardes. Acostumei-me a isto. / Paguei todos os meus livros. Desde o meu primeiro exemplar de xerox, até este último mais esmerado, de que você tem dois exemplares, tudo foi patrocinado com as minhas aulas. Sinto alguma frustração por isso, por não ter um editor e um público. Penso em desistir, mas é algo compulsivo. A arte é um vício maior do que qualquer outro. É um delírio. / Mas quero reafirmar que tudo valeu a pena. Só pelo fato de existir no mundo uma única leitora. [...]" (pp. 37-8)
Maria Isabel é mais velha, rica e de família tradicional do Recife, mas é ela que aos poucos transforma a relação sensível em um amor sensual: "Foda-se, Afonso, eu não quero ser sacralizada. Não estou esperando nenhuma brisa de abril, nem quero que façam poemas para mim como para aquelas musas gregas. Eu tenho carne, ainda que às vezes eu mesma me esqueça, como se fosse feita só de palavras."
"Afonso, Esqueça aquela última carta. Jogue-a fora, se ainda a tiver. Meu pobre poeta, não quero que guarde de mim nada que o magoe. Se só existimos na literatura, não seria mais justo marcarmos alguns versos ou capítulos felizes e termos, apenas ali, a nossa existência? [...] Na sua carta, você falou-me em encontros de almas. Eu só conheço o desencontro, a perda. Então, agredi por sentir esta dependência de alguém que nem conheço. Na verdade, eu estava antecipando uma perda futura. Não é assim que fazem os poetas? / Não venha me dizer que estes poetas prodígios falam do seu passado. O que RImbaud, Álvares de Azevedo ou Castro Alves tiveram no passado? É a dor de um futuro não realizado que choram os poetas, não o seu passado. Por isso, penso eu, quando chegam a velhos, escrevem romances. Você pensa em ser romancista também, um dia, Afonso? Muitos poetas que tiveram a sorte ou o azar de envelhecer viraram romancistas. [...]" (pp. 49-50)
Marcos Alexandre Faber foi muito feliz na criação de uma personagem forte e verdadeira. De fato, a voz da misteriosa Maria Isabel logo domina todo o livro e seduz o leitor desde o início. Afinal, como ela afirma com muita propriedade em uma das cartas: "Uma mulher tem mais mistério do que toda a poesia do mundo!"
Sobre o autor: Algumas Obras – Ficção: O lampejo do vaga-lume (EDUFPE, 2018). Poesia: Recife Porto (EDUFPE, 2004); Da destruição do poema (EDUFPE, 2007). Crítica literária: A geração dos discos (EDUFPE, 2012); A poesia da Geração 65 (CEPE, 2019). Música: A lenda da doce nuvem, 1996; O Engenho de Orpheu, 2013.
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