Tiago Germano - Catálogo de pequenas espécies

Literatura brasileira contemporânea
Tiago Germano - Catálogo de pequenas espécies - Editora Caos & Letras - 216 Páginas - Projeto Gráfico: Cristiano Silva - Arte de Capa: Eduardo Sabino - Lançamento: 2021.

Com notável domínio da técnica narrativa e uma ironia bem-humorada, Tiago Germano nos mostra a violência, o absurdo e o ridículo da condição humana em uma época na qual o nosso comportamento se aproxima tanto da natureza animal naquilo que ela tem de mais selvagem e, portanto, nos nivelando a outras espécies pretensamente menos evoluídas. De fato, alguns representantes da espécie conhecida como Homo sapiens não têm feito bom uso de suas características como o raciocínio abstrato, a linguagem e a resolução de problemas complexos.

Os vinte contos desta antologia são divididos em duas partes: Taxonomia,  reunindo narrativas de caráter mais lírico e reflexivo sobre o indivíduo e Cadeia alimentar que tem como base aspectos da nossa vida contemporânea, incluindo a crise política e social, o avanço da igreja evangélica e a pandemia, mas as narrativas têm em comum a convivência de personagens humanos com animais domésticos ou selvagens em um contexto de aparente normalidade.

No conto Le Gran Circus Moscowum menino de nove anos percebe a movimentação no terreno baldio próximo da sua casa quando chega à cidade um circo que irá mudar a rotina familiar e os tradicionais almoços à base da insólita farofa de formigas tanajuras, especialidade do seu pai. Logo, as crianças e a mãe ficam fascinados com o grande Dimitriov e os trapezistas cossacos, assim como a magia do circo, apesar do elefante magricela.

"Meu irmão e eu notamos que, enquanto os palhaços corriam de um lado para o outro do picadeiro, às vezes se embarafustando no meio da multidão e escalando as arquibancadas, meia dúzia de homens sem camisa se penduravam naquelas estruturas de metal enferrujado e amarravam nelas cordas, testando sua resistência com puxavantes que ameaçavam derrubar toda a lona esburacada do circo. Eles eram grandes e musculosos e nós apontamos para eles chamando a atenção da nossa mãe, que tentava conter a minha irmã agora rachando o bico com as peripécias dos palhaços e seu entra-e-sai no fusca sem porta. Ela nos explicou que aqueles deviam ser trabalhadores do circo, preparando o palco para o próximo número. Numa porção pouco iluminada do picadeiro, vimos os homens estenderem uma rede de proteção muito fina, quase invisível, e dois balanços muito longos, como que feito para gigantes, sendo empurrados no ar por figuras meio disformes, que emanavam brilhos de lantejoula no ponto mais alto que conseguíamos enxergar." - Trecho do conto Le Gran Circus Moscow (p. 35)

A lei do mais forte é uma das melhores narrativas e resume com muito humor a questão entre o caráter doméstico e selvagem de homens e animais. O conto é inspirado no próprio cão do autor, César, para quem o livro é dedicado, um daschund mal-humorado que passa por algumas transformações de personalidade por ter que morar em um pequeno apartamento, até o dia em que enfrenta, acompanhado por seu dono, um perigoso husky siberiano da vizinhança.

"A alguns metros de mim, o dachshund encarava o husky siberiano a alguns metros dele, um clichê de faroeste canino, os rabos levantados, a velocidade do mundo em volta diminuindo, a atmosfera daquela tarde de sol se concentrando na curta distância entre os dois. Tudo parou e continuou no mesmo instante, e os dois cachorros avançaram ao mesmo tempo, um no pescoço do outro. As patas de trás se apoiaram no chão de terra batida e as patas da frente se atracaram como os braços de dois pugilistas que se agarram. O dachshund foi derrubado imediatamente, e eu vi seu corpo tombar e sumir embaixo do husky siberiano. Ouvi seu berro desesperado, entrecortado pelo rosnar ameaçador do outro animal que lhe enfiava os dentes sem clemência. Consegui me erguer e corri até eles, penetrando naquela nuvem de poeira e cravando minhas unhas no couro branco e felpudo do outro cão, que reagiu virando instintivamente a cabeça, investindo agora contra mim. O dachshund escapou de baixo dele e tentou ainda me defender. Em meio ao ataque mútuo, aos gritos e latidos que explodiam pelo bairro, a dona do husky siberiano finalmente surgiu com uma guia na mão, uma imagem banal em meio à carnificina." - Trecho do conto A lei do mais forte (p. 124)

Outro conto de destaque na antologia é Continência – difícil de resumir em um único trecho – fazendo um paralelo entre os efeitos da eleição de Jair Bolsonaro no cotidiano de uma família brasileira comum a partir de uma foto do sobrinho do narrador-protagonista de 13 anos que sorri para a câmera, batendo continência, e a tragédia da família Kennedy na imagem icônica do pequeno John Kennedy Jr., então uma criança de três anos, batendo continência no dia do enterro de seu pai, o presidente norte-americano John Kennedy, em novembro de 1963.

Sobre o autor: Tiago Germano é autor do romance A Mulher Faminta (2018) e da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (2017), indicada ao Jabuti e vencedora do Prêmio Minuano de Literatura. É mestre e doutor em escrita criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e foi bolsista do Programa de Internacionalização da Capes na School of Literature, Drama and Creative Writing da University of East Anglia, na Inglaterra, por onde passaram escritores como o Nobel Kazuo Ishiguro e Booker Prize Ian McEwan. Nasceu em Picuí e mora atualmente em João Pessoa, onde é cofundador da escola de escrita Edícula Literária.

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