Jorge Amado - A morte e a morte de Quincas Berro Dágua

clássicos da Literatura
Jorge Amado - A morte e a morte de Quincas Berro Dágua - Editora Companhia das Letras - 144 Páginas - Capa e projeto gráfico: Kiko Farkas e Guilherme Dorneles / Máquina Estúdio - Lançamento: 2022.

Os romances de Jorge Amado (1912-2001) nos ensinam que a universalidade das obras literárias não é incompatível com uma abordagem regionalista ou folclórica, muito pelo contrário, a mágica dos grandes autores faz com que, quanto mais restrito o cenário da narrativa, mais abrangente se torne a representatividade da essência humana, prova maior disso é o interesse renovado nas traduções do escritor que melhor soube representar a Bahia em vários países. Esta edição especial, que conta com prefácio de Itamar Vieira Jr., posfácio de Affonso Romano de Sant’Anna e ensaio do artista plástico Marepe, é uma justa homenagem a uma das novelas mais perfeitas já escritas e que pode ser incluída sem prejuízo em qualquer antologia da literatura mundial, A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, publicada originalmente em 1959 na revista Senhor, após o grande sucesso de Gabriela Cravo e Canela (1958). 

Joaquim Soares da Cunha era um respeitável cidadão casado com uma vida pacata de funcionário público até que, aos cinquenta anos, decide abandonar tudo para viver na companhia dos malandros e das prostitutas, transformando-se em uma lenda local, Quincas Berro D´água, "cachaceiro-mor de Salvador", como ficou conhecido. A esposa Otacília não resistiu ao abandono e morreu. A filha Vanda e seu marido, Leonardo, também funcionário público, passaram a suportar a vergonha daquele parente incômodo e sua vida inconfessável ao longo dos últimos dez anos até que recebem a notícia do falecimento de Quincas em um quarto miserável, "um morto pouco apresentável, cadáver de vagabundo falecido ao azar, sem decência na morte, sem respeito, rindo-se cinicamente [...]".

"Até hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro Dágua. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no depoimento das testemunhas, lacunas diversas. Não há clareza sobre hora, local e frase derradeira. A família, apoiada por vizinhos e conhecidos, mantém-se intransigente na versão da tranquila morte matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem frase, acontecida quase vinte horas antes daquela outra propalada e comentada morte na agonia da noite, quando a lua se desfez sobre o mar e aconteceram mistérios na orla do cais da Bahia. Presenciada, no entanto, por testemunhas idôneas, largamente falada nas ladeiras e becos escusos, a frase final repetida de boca em boca representou, na opinião daquela gente, mais que uma simples despedida do mundo, um testemunho profético, mensagem de profundo conteúdo (como escreveria um jovem autor de nosso tempo)." (pp. 23-4)

A filha de Quincas aproveita a oportunidade para esquecer o passado vergonhoso do finado pai e resgatar a memória respeitável de Joaquim, contratando uma agência funerária para transformar completamente o aspecto do defunto que nem parecia mais o mesmo: "penteado, barbado, vestido de negro, camisa alva e gravata, sapatos lustrosos, era realmente Joaquim Soares da Cunha quem descansava no caixão [...]". O único inconveniente que a filha não conseguiu modificar foi o sorriso cínico que o morto tinha no rosto que nem tampouco os funcionários da funerária puderam remover. Tirando este detalhe, era novamente o pai responsável que seria enterrado pela família.

"A famíla do morto – sua respeitável filha e seu formalizado genro, funcionário público de promissora carreira; tia Marocas e seu irmão mais moço, comerciante com modesto crédito num banco – afirma não passar toda a história de grossa intrujice, invenção de bêbedos inveterados, patifes à margem da lei e da sociedade, velhacos cuja paisagem devera ser as grades da cadeia e não a liberdade das ruas, o porto da Bahia, as praias de areia branca, a noite imensa. Cometendo uma injustiça, atribuem a esses amigos de Quincas toda a responsabilidade da malfadada existência por ele vivida nos últimos anos, quando se tornara desgosto e vergonha para a família. A ponto de seu nome não ser pronunciado e seus feitos não serem comentados na presença inocente das crianças, para as quais o avô Joaquim, de saudosa memória, morrera há muito, decentemente, cercado da estima e do respeito de todos. O que nos leva a constatar ter havido uma primeira morte, se não física pelo menos moral, datada de anos antes, somando um total de três, fazendo de Quincas um recordista da morte, um campeão do falecimento, dando-nos o direito de pensar terem sido os acontecimentos posteriores – a partir do atestado de óbito até seu mergulho no mar – uma farsa montada por ele com o intuito de mais uma vez atazanar a vida dos parentes, desgostar-lhes a existência, mergulhando-os na vergonha e nas murmurações da rua. Não era ele homem de respeito e de conveniência, apesar do respeito dedicado por seus parceiros de jogo a jogador de tão invejada sorte e a bebedor de cachaça tão longa e conversada." (pp. 24-5)

O velório é realizado no mesmo quarto que tinha servido de moradia a Quincas nos últimos anos e tudo parece transcorrer conforme os planos da família. No entanto, quando os amigos de bebedeiras chegam ao local, encontrando o defunto com um sorriso, aproveitam a ausência dos familiares, que haviam se recolhido para descansar, e levam o corpo de Quincas para uma última farra regada a muita cachaça, juntamente com Quitéria do Olho Arregalado, terminando a noite no saveiro de Mestre Manuel onde os aguarda um caldeirão de barro contendo moqueca de arraia com dendê e pimenta para uma festa em alto mar e, principalmente, uma nova morte bem mais digna para o velho amigo Quincas Berro Dágua que poderá enfim descansar em paz.

"No fim da tarde, quando as luzes se acendiam na cidade e os homens abandonavam o trabalho, os quatro amigos mais íntimos de Quincas Berro Dágua – Curió, Negro Pastinha, cabo Martim e Pé de Vento – desciam a ladeira do Tabuão em caminho do quarto do morto. Deve-se dizer, a bem da verdade, que não estavam eles ainda bêbedos. Haviam tomado seus tragos, sem dúvida, na comoção da notícia, mas o vermelho dos olhos era devido às lágrimas derramadas, à dor sem medidas, e o mesmo pode-se afirmar da voz embargada e do passo vacilante. Como conservar-se completamente lúcido quando morre um amigo de tantos anos, o melhor dos companheiros, o mais completo vagabundo da Bahia? Quanto à garrafa que o cabo Martim teria escondida sob a camisa, nada ficou jamais provado." (p. 63)

Clássicos da Literatura
Sobre o autor: Jorge Amado nasceu em 10 de agosto de 1912, em Itabuna (BA). Começou a escrever profissionalmente como repórter aos catorze anos, em veículos como Diário da Bahia, O Imparcial e O Jornal. Estreou na literatura com o romance O país do Carnaval (1931). Em 1945, foi eleito deputado federal pelo PCB – partido com o qual romperia anos depois. É autor de clássicos como Gabriela, cravo e canela, Tenda dos milagres e Tieta do Agreste. Faleceu em 2001, alguns dias antes de completar 89 anos.

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