Paulo Mendes Campos - Poesia
O brasileiro é um mestre na arte de escrever crônicas que, em última análise, representam o inusitado casamento do jornalismo com a literatura, estilo que não consigo identificar em outros países. Seria difícil resumir aqui os inúmeros escritores que se consagraram ao longo do tempo com esses textos, normalmente leves e bem-humorados. Contudo, destaca-se o quarteto de escritores mineiros, batizado como “os quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”, constituído por: Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino. Este lançamento pretende divulgar a poesia completa de Paulo Mendes Campos, editada em livros e outros veículos (jornais, revistas e coletâneas), assim como poemas inéditos selecionados pelo pesquisador Luciano Rosa do acervo do autor, depositado no Instituto Moreira Salles (IMS).
Esta edição apresenta ainda uma amostra da produção de Paulo como tradutor, incluindo poemas de clássicos da literatura (García Lorca, Robert Frost, T.S. Eliot, William Blake, entre outros). Contudo, o que surpreende mesmo é a força da poesia de Paulo Mendes Campos, influenciada (e ofuscada) pelo lirismo de suas crônicas, principalmente em seu livro de estreia, A palavra escrita, publicado em 1951. Nos versos de Hino à vida encontrei uma verdadeira oração ao ritual do escritor que precisa continuar o seu trabalho, apesar de tudo: "Continuar com as unhas, os pulmões, o sexo, / Sem medir a iniciativa e o resultado, / Sem comparar nossos poderes e os alheios, / Continuar como alguém, construindo e desmanchando, / Continuar como todas as ações continuam, / E no tempo se prolongam estranhamente" Lindo isso, não é mesmo?
Uma curiosidade é a semelhança de Hino à vida com o final de O inominável de Samuel Beckett (publicado dois anos depois, em 1953): " (...) é preciso continuar, não posso continuar, é preciso continuar, então vou continuar, é preciso dizer palavras, enquanto houver, é preciso dizê-las, até que elas me encontrem, até que elas me digam, estranha pena, estranho pecado, é preciso continuar, talvez já tenha sido feito, talvez já tenham me dito, talvez já tenham me levado até o limiar da minha história, diante da porta que se abre para a minha história, isso me surpreenderia, se ela se abrir, vai ser eu, vai ser o silêncio, ali onde estou, não sei, não saberei nunca, no silêncio não se sabe, é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar."
Sentimento do Tempo
(A palavra escrita - 1951)
Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar; me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer por que deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas mes pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
E um coração ardente em coisa fira.
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.
Meus pássaros caíam sem sentidos.
No olhar do gato passavam muitas horas
Mas não entendia o tempo àquele tempo como agora.
Não sabia que o tempo cava na face
Um caminho escuro, onde a formiga passe
Lutando com a folha.
O tempo é meu disfarce.
O suicida
(A palavra escrita - 1951)
Quando subiu do mar a luz ferida,
Ao coração desceu a sombra forte,
Um homem triste foi buscar a morte
Nas ondas, flor do mal aos pés da vida.
Com lucidez tremeu olhando tudo
Como um falcão de súbito no alto
Estremece sentindo o sobressalto
Do abismo que lhe fala porque é mudo
Ás vezes vou ali, fico a pensar
Na paz que lhe faltou e que me falta
E no confuso alarme do meu fim.
O infinito silêncio me diz – "salta",
Enquanto faz-me a brisa respirar
O fumo da cidade atrás de mim.
Hino à vida
(A palavra escrita - 1951)
Continuar a primeira palavra escrita,
Continuar a frase, não resigná-la
A temor, imperfeição, náusea,
Continuar com imenso trabalho
(Irreconhecível bosque do abstrato),
Doam os músculos e os cães ofeguem,
Continuar através do fogo e da água,
Em nome do fogo e da água,
Continuar desejando, farejando,
Por despeito e ambição continuar,
Não abrir muito os olhos,
Não cerrá-los demasiado,
Continuar por esta rua sem fé,
Como o cego devassado de um sol morto,
Como um anarquista de sensações,
Místico do prosseguimento,
Advogando a persistência, a engrenagem,
Continuá-las, ideia, sensibilidade, diferenças,
Porque não se pode parar,
Continuar com a paixão e sem ela,
Como um pugilista fatigado,
Com a disciplina da expedição guerreira,
A ferocidade histórica do saque,
Continuar, não desistir, não esmorecer,
Não refletir intensamente,
Acompanhando a órbita essencial da natureza,
Como os depósitos minerais,
A vida imperceptível do cristal,
A desagregação da vontade,
Como o crime caminhando, onde, quando,
O explorado por um sentimento,
Um camelo magro,
Continuar, ó máquina palpitante, ó vida,
A comiseração não refreie o nosso hálito,
Continuar como um jogador que perde
E se parar há de faltar-lhe alento e vida,
Continuar continuando,
Como um soldado em guerra,
Um mensageiro de tempo evangélico,
Um condenado à morte que-não-pode-morrer-antes-da morte,
Um navio a fazer água,
Um rato, um gigante,
Porque seria perigoso demorar,
Ceder à tentação de um voo incalculável,
Porque a ideia do não continuar existe em nós,
Símbolo fechado, êmbolo de resoluções imprevistas,
Continuar, reação em cadeia de minutos incoerentes,
Chama que se alastra de momentos opacos,
Como os antepassados continuaram,
As águas míticas, o espírito da treva,
Continuar,
A despeito de humilhações, do medo,
Dos vagares do amor,
Continuar com as unhas, os pulmões, o sexo,
Sem medir a iniciativa e o resultado,
Sem comparar nossos poderes e os alheios,
Continuar como alguém, construindo e desmanchando,
Continuar como todas as ações continuam,
E no tempo se prolongam estranhamente,
Continuar porque não se pode senão continuar,
Emparedado em dois tempos,
Toda a podridão do remorso,
Toda a vontade de não continuar,
E querer continuar,
Árido este mundo,
Porque a vida é sempre a vida, a mesma vida.
Porque não se pode,
Porque, se parássemos, ouviríamos um estrondo
E depois, perturbados, o silêncio do que somos.
"Emparedaram-me o mar"
(Poemas inéditos)
Emparedaram-me o mar
e a brisa do mar.
O estofo da poltrona está roto.
Pifou o ar-condicionado.
O rádio do porteiro...
As motos na rua...
Os mortos-vivos...
Neste caos eu me viro.
"Aqui na terra do engano"
(Poemas inéditos)
Aqui na terra do engano
viver não é o destino.
Só o silêncio é divino.
Todo discurso, inumano.
Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Poesia de Paulo Mendes Campos
Comentários