Elton Frederick - A vida breve dos cães
O romance de estreia de Elton Frederick pode ser considerado uma ficção especulativa, gênero que se confunde com a distopia, contudo extrapolando situações reais similares da atualidade, por exemplo o controle da liberdade de expressão política e religiosa em regimes totalitários, o preconceito e a violência de gênero, assim como outras restrições à individualidade. Eventos que podem acontecer ou já estão acontecendo no mundo, um estilo que foi popularizado por Margareth Atwood com o seu clássico "The Handmaid's Tale" ou "O Conto da Aia" como foi traduzido no Brasil, obra que trata do controle da vida das mulheres pelo Estado, publicada originalmente em 1985 e que ganhou novo fôlego com a recente e premiada adaptação para série de TV nos EUA.
Em "A vida breve dos cães", a substância que garante a cura de uma doença mortal está presente no sangue das mulheres de 79 anos, as quais perdem o direito aos próprios corpos quando completam esta idade, devendo ser entregues pela família e sacrificadas pelo Estado em nome de um suposto "bem comum". A trama é conduzida por três vozes narrativas distintas, Isaque, funcionário de uma pet shop que concorda com a Solução 79, procedimento que oficializa o assassinato das mulheres chamadas "propiciadoras", aprovado pela população em plebiscito; Isabel (narrado em terceira pessoa), mãe adotiva de Isaque, diaconisa de uma igreja evangélica que, em estado vegetativo, se encontra na fatídica idade; e Cecília, publicitária que teve um relacionamento com Isaque e obviamente não concorda com o procedimento de "abate" oficial das mulheres.
"Há quem encontre alguma solenidade no momento. Eu não. No dia agendado para o encerramento de sua vida, preferi a frieza da obrigação e a licença para refletir sem culpa: algumas existências não fazem sentido. Ou fazem durante um tempo e depois deixam de fazer. Não fosse a obrigatoriedade de entregá-la, este seria o caso da minha mãe desde que a cama virou sua pátria; este é o caso de qualquer mulher que rasteja até completar 79 anos para que então seja depositada no Centro de Transfusão mais próximo, sadia ou enferma, lúcida ou caduca, feliz com a vida ou ansiando a morte. Com a atualização cadastral, um eventual atraso implica a visita de um agente público que, educadamente, pergunta se está tudo bem, se aconteceu alguma coisa, se a família precisa de ajuda para o transporte ou de apoio psicológico. Depois dessas gentilezas, levam sua avó, sua mãe, sua irmã, sua esposa. Não há negociação, suborno ou exceção. É assim e pronto. Estamos todos de acordo e satisfeitos com a troca. O momento de se indignar passou. E passou rápido depois do plebiscito." (p. 14)
O fio condutor do romance tem como base o dia da entrega de Isabel às autoridades no Centro de Transfusão mais próximo de sua residência. Este dia é revisitado por Isaque e Cecília alternadamente, assim como trechos do passado que demonstram detalhes da criação de Isaque por Isabel, fazendo com que o leitor entenda aos poucos as motivações de cada personagem e o impasse ético e moral sobre uma solução egoísta aceita pela sociedade e pela religião de sacrificar uma vida por outra, neste caso uma vida feminina diga-se de passagem, mais uma agressão à longa lista que as mulheres precisam suportar em uma sociedade controlada por homens.
"Lembrei de um argumento de Cecília. Estávamos na cama, ela lendo, eu quase dormindo. Me cutucou, sem nenhuma delicadeza, e começou: 'E se os cientistas descobrirem que a mesma substância está presente no sangue das mulheres de sessenta e nove? De cinquenta e nove. De quarenta e nove. Qual o limite, Isaque?' Ela levantou e começou a andar pelo quarto, falando alto, como se tivesse recebido uma revelação. 'Cuidado para não acordar a minha mãe', eu pedi, falando baixo, como se minha mãe pudesse realmente acordar. Eu não estava entendendo o porquê daquilo àquela hora. Ela dizia que a solução 79 estabeleceu uma linha de chegada às mulheres. Cada uma sabe exatamente a data limite. Podem parar no meio do caminho, mas dali não passam. A última parada é o Centro de Transfusão mais próximo de casa e qualquer ambição geográfica além dessa é apenas autoilusão ou caduquice. Essa finitude demarcada, insistia Cecília, provoca uma mudança na relação das mulheres com a vida. [...]" (pp. 101-2)
O autor faz com que os cães tenham lugar de destaque na trama, contrastando a sua breve vida com a das mulheres de 79 anos, assim como o processo consentido de eutanásia no caso dos animais que passam por um sofrimento que não tem mais cura, fato proibido aos humanos. Afinal, segundo Isabel, que representa uma visão religiosa, "os cachorros não vão para o Céu", fato incompreensível para o pequeno Isaque que retrucou quando ainda era um menino: "Eu não acredito em um Deus que não gosta de cachorro." Um livro de estreia muito recomendado que faz pensar sobre temas sensíveis com originalidade e coragem, papel de toda boa literatura.
"Nunca se tratou de teologia, lógico. Por trás de todo holocausto, há um texto sagrado a dar razão à vontade dos homens; para cada brutalidade praticada, há um profeta, um apóstolo, um pastor ou um padre disposto a declarar que guerra é paz, que morte é vida. O que todos tinham em comum era o medo de perder seus lugares na fila. Pos os homens de deus adoecem, seus filhos e suas mulheres também. Era melhor garantir a chance de usar o novo fármaco, antes que alguém dissesse que a Solução 79 era incompatível com a fé que eles defendiam. Até porque não parecia uma troca justa, né? Eles entregariam suas mães e e avós ao abate e, por capricho religioso, abririam mão de injetar o sangue salvador da avó ou da mãe do vizinho? Nem pensar. Até aqueles grupos que desde sempre rejeitavam transfusões de sangue repensaram seus credos e todos aceitaram os termos deste escambo. Por isso, a resistência inicial, aquelas vigílias nas praças que denunciavam homens malignos que queriam fazer o papel de deus, foi logo substituída por uma adesão interesseira, mas compreensível. Todo mundo quer ter mais chance de sobreviver à loteria genética que distribui células sadias para uns e células doentes para outros. É melhor ficar na fila. O deus deles entende, o deus deles perdoa." (p. 119)
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