Socorro Acioli - Oração para Desaparecer
A inspiração de Socorro Acioli para este romance vem de eventos reais ocorridos com a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, localizada no distrito de Almofala do município de Itarema, no estado do Ceará. A igreja foi construída originalmente em 1712 por religiosos da Companhia de Jesus para a evangelização dos povos originários da etnia Tremembé e soterrada em 1897 pela invasão de dunas móveis, ressurgindo em 1940-1943 devido à mudança dos ventos na região. Antes do soterramento da igreja, a arquidiocese decidiu remover as imagens sacras o que provocou um tumulto popular e a tentativa de uma moradora local, Joana Camelo, de se apoderar de uma estátua de ouro de Nossa Senhora da Conceição, encontrada originalmente por indígenas Tremembé.
O romance é dividido em três partes, na primeira, com o título "Você trouxe todas as palavras", uma mulher é desenterrada de uma cova no munícipio de mesmo nome, Almofala, porém em Portugal. Ela é resgatada nua, desmemoriada e com ferimentos no corpo por Florice e Fernando, um casal de idosos, que lhe explicam que ela é uma ressurrecta que ressuscitou de uma outra vida, ou seja, "quem morre sem morrer". Completamente confusa, a mulher não lembra o próprio nome ou de onde veio. Segundo explicação do casal, em outros casos a memória costumava retornar em poucos dias, mas não é o que ocorre com Cida, como passa a ser chamada, acostumando-se a uma nova vida com a família que a salvou e conhecendo Jorge, por quem se apaixona.
"Acordei com os olhos grudados de lama, o nariz entupido de terra e a boca cheia de areia estralando nos dentes. Alguém me enterrou. Bichos alisavam minha língua, rastejavam pelos ouvidos e por outros caminhos para dentro das carnes. Debaixo do chão era uma agonia gelada, molhada, fedida. Não sentia braços e pernas no breu daquela cova. Perdi a noção do meu corpo, achei que me transformaria em um bicho morto, me desfazendo até virar pó. Ninguém sabe o que fazer na hora da morte. / Quando eu já suplicava pelo fim, o buraco me apertou como uma mão gigante de terra, envolveu meu corpo inteiro e começou a me expulsar. Os olhos lacrados, a hora do parto, a boa hora da Nossa Senhora, as palavras se repetiam no pensamento tomado de desespero." (p. 13) - Trecho da Parte I - Você trouxe todas as palavras
Na segunda parte, "Os ossos dela não estão lá", um novo personagem, que reside na Almofala brasileira, chamado Miguel conta a sua história, interrogado por Jorge. Ficamos conhecendo finalmente o passado de Cida, na verdade Joana Camelo, que viveu uma grande paixão com Miguel quando este foi trabalhar como biólogo na região para estudar os cavalos-marinhos. A questão é que o tempo passou de forma diferente no Brasil e Miguel agora está envelhecido, enquanto Cida/Joana ainda é jovem. A população da cidade nunca perdoou Joana, criada na cultura da comunidade Tremembé local e tida como uma bruxa, encantadora de homens, principalmente por ela ter desaparecido misteriosamente após o episódio do soterramento da igreja.
"Acordei sentindo meu sofrimento dos últimos anos todos aqui, no meu peito, preso, pesado, doendo, sabe? Eu achei que o destino faria de mim um velho senil, desmemoriado, urinando nas calças, sem saber meu próprio nome, em plena demência, sem reconhecer nada, ninguém, lugar nenhum, livre do tormento de lembrar a tragédia que arruinou minha vida. Quando esse tempo chegasse eu teria sossego, babando no peito, sujando a cadeira de rodas, peidando igual um porco velho até morrer e acabar tudo, o último suspiro na paz do esquecimento. Já se passaram quarenta e nove anos e eu não esqueci. Pois está aqui essa carcaça de homem, esse couro esturricado, um olho cego, o outro quase sem ver, de tanto ficar no sol juntando saca de areia, de tanto olhar para a estrada para ver se ela voltava, de tanto pegar a jangadinha e ficar no meio do mar pedindo ao Diabo que mandasse uma onda e me levasse." (p. 116) - Trecho da Parte II - Os ossos dela não estão lá
Na terceira e última parte, "A língua de fogo avisou", Cida retorna para o Brasil com Jorge e reencontra o seu passado, tornando-se novamente Joana, mas como será o futuro de sua relação atual com Jorge iniciada do outro lado do Atlântico e o amor por Miguel que ficou perdido em algum lugar do passado? São questões que a protagonista precisará resolver, assim como o entendimento de sua ancestralidade e a ligação com os Encantados. Um belo exemplo de realismo fantástico unindo as culturas lusófonas de Brasil, Portugal e Moçambique: "A vida é feita de palavras, elas explicam e fazem nascer e morrer. Se ninguém pronuncia um nome este ser está morto, mesmo que respire e leve um coração batendo no peito. Estar vivo é ser palavra na boca de alguém."
"No sonho, a Menininha me dava um bilhete com duas palavras escritas. Uma era Joana. A outra, Almofala. A princípio não me dizia nada novo, é o nome da aldeia onde fui resgatada por Florice e Fernando. Lembrei que eles diziam que existiam várias Almofalas em Portugal e pedi a Jorge para pesquisar. Foi assim que ele descobriu que há uma Almofala no Brasil e encontrou as notícias sobre uma mulher chamada Joana cujo desaparecimento nunca foi explicado. Sou eu essa mulher, eu estava desaparecida de mim e lembrei porque precisava voltar ao Brasil. / Primeiro enfrentamos um voo de Lisboa à Fortaleza. Quando víamos o mar da janela, Jorge me perguntou o que eu achava que poderia ter acontecido na travessia entre um ponto e outro, se eu teria ido por terra, pelo ar, ou flutuando na água, e eu não tinha nenhuma lembrança, uma fumaça ocupava meus pensamentos." (p. 167) - Trecho da Parte III - A língua de fogo avisou
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