Leonardo Padura - Pessoas decentes
Leonardo Padura é um dos autores preferidos aqui da casa já há algum tempo. Depois do grande sucesso de público e crítica de seu romance histórico O homem que amava os cachorros (Editora Boitempo, 2013) e também dos policiais A neblina do passado (Editora Saraiva, 2012) e Hereges (Editora Boitempo, 2015), Leonardo Padura se tornou um dos escritores cubanos mais conhecidos no Brasil. Neste seu mais recente lançamento, o autor mostra mais uma vez estar em grande forma com o seu personagem recorrente, o carismático e cético detetive Mario Conde que, após a saída dos quadros da polícia local, agora aos sessenta e dois anos, continua sobrevivendo à base de expedientes, assim como boa parte da população de Havana, diga-se de passagem. No seu caso, comprando e vendendo livros usados, sendo ele próprio um escritor frustrado.
Em "Pessoas decentes", um ex-colega da polícia pede a ajuda de Mario Conde para desvendar o brutal assassinato de Reynaldo Quevedo, antigo e poderoso burocrata da área de cultura que colaborava com o governo da revolução, censurando e delatando vários artistas. Esta parte da narrativa é ambientada em Cuba no ano de 2016 quando a cidade de Havana recebe a visita de Barack Obama, assim como um show dos Rolling Stones, eventos nunca antes sonhados pela população local. Em paralelo, alternando os capítulos, Padura faz uma reconstituição histórica do início do século XX, uma época na qual pairava a ameaça do cometa Halley e a cidade se entregava ao jogo e a prostituição, um mercado disputado pelo cubano Alberto Yarini e o francês Louis Lotot. Nesta parte, a narrativa é conduzida em primeira pessoa pelo policial Arturo Saborit que investiga o assassinato de duas prostitutas.
"Alguém tem a menor ideia de como se vive quando se sabe, com perversa precisão científica, o dia em que o mundo vai se acabar e você, é óbvio, vai desaparecer com ele? Alguém já viveu a experiência de poder contar nos dedos da mão os anos, depois os meses e depois as semanas de vida que restam para si e para todos os outros? Porque a chegada do Apocalipse nunca teve uma data e uma representação mais exata: em 11 de abril de 1910, entre as quatro e as cinco da tarde, quando uma bola de fogo vinda do céu se chocaria com a Terra. Sim: o cometa Halley. [...] O cometa Halley era o pão de cada dia – e com razão. Em sua maioria, os moradores de Havana, tão habituados às desgraças, é claro que receberam o anúncio apocalíptico conforme acontecia com qualquer evento. Com toda a paixão, todo o alvoroço e fatalismo desfraldados. E desatou-se o delírio. Diante do inevitável, muitos negaram-se a gastar em telescópios ou mapas cósmicos inúteis, e a maioria preferiu enveredar pelas opções mais divertidas, como a de comprar e consumir álcoois e alucinógenos, a de apostar em qualquer coisa que lhes ocorresse nas casas de jogo que brotavam como formigueiros, a de dançar a qualquer hora e com qualquer música e, sobretudo, mais que tudo, a de fornicar como possessos. Estabeleceu-se na cidade o império do êxtase e da luxúria. Vivia-se sobre a erupção do hedonismo, da corrupção, da pressa, e, em tal ambiente de loucura, as pessoas repetiam o lema brutal que todos aqueles que podiam, sempre que podiam, punham em prática: 'Vamos trepar, pois o mundo vai acabar'" (p. 29) - Trecho da narrativa de Arturo Saborit (1909)
A investigação sobre o assassinato de Reynaldo Quevedo, que já contava com oitenta anos, se torna especialmente complicada para Mario Conde devido à quantidade e variedade de inimigos que o cruel censor, chantagista de suas vítimas, acumulara no passado e também às condições em que o corpo mutilado foi encontrado em seu apartamento: o pênis cortado com a faca da própria cozinha dele, assim como as falanges de três dedos da mão direita com um alicate ou algo semelhante. O detalhe final foi a posterior descoberta de vestígios de sêmen no reto, uma evidência constrangedora para um perseguidor de homossexuais nos tempos em que atuara no regime da revolução. Para dificultar ainda mais o trabalho de Conde, algus dias depois um segundo cadáver – que se comprova ser de Marcel Robaina, genro de Quevedo –, é encontrado com o mesmo tipo de mutilação genital.
"Quem fora, realmente, Reynaldo Quevedo? Apenas e sempre um censor impiedoso, um repressor sem remorsos, um militante devorador de existências que agia em nome da pureza ideológica exigida pela construção do mundo melhor? Como teria assimilado sua própria marginalização ele, que fora um marginalizador? De que maneira teria assumido sua derrota histórica um crente, como ele, nas leis inexoráveis destacadas pelo materialismo histórico? Teria sentido vergonha por ter uma velhice desafogada graças às obras dos próprios artistas que humilhou ou será que seu cinismo o blindava contra aquele tipo de sentimento? O fato de ter sido um filha da puta devia-se a conjunturas de uma época ou correspondia a uma condição humana cuja existência e capacidade de manifestação não tinham data de vencimento? Será que Quevedo pertencia à estirpe dos homens que se tornam torturadores, carrascos, sicários, obedientes e esmerados esbirros convencidos de que o fim justifica os meios porque trabalham para um presente de ordem e um futuro luminoso enquanto arrancam unhas com a mesma frieza com que Reynaldo Quevedo tentava extirpar condutas consideradas impróprias, lacerando a vida de suas vítimas?" (p. 65) - Trecho da narrativa de Mario Conde (2016)
Na parte da narrativa que ocorre em 1910, uma cidade completamente diferente é dominada pelo cafetão Alberto Yarini que disputa o monopólio da prostituição local com os franceses e guarda grandes pretensões no governo do Partido Conservador. Os assassinatos em sequência de duas prostitutas são investigados pelo jovem Arturo Saborit que, apesar de se considerar um homem decente, acaba se envolvendo com os negócios escusos de Yarini e a sua disputa com o francês Lotot pelo monopólio da prostituição em Havana. Leonardo Padura, como sempre, conecta os eventos do passado com o presente de forma magistral, demonstrando as transformações políticas e sociais de Cuba ao longo do tempo. Um livro muito recomendado, especialmente imperdível para os apreciadores de ficção histórica.
"Obama em Cuba. Havana está fervendo. Exércitos de jornalistas, empresários, turistas, curiosos. Entusiastas, otimistas, niilistas. Contrariados e esperançosos. E muitos policiais, todos os policiais. As pessoas coladas na televisão. Sabe-se que Obama está falando com dissidentes, com empreendedores, é visto reunido com os dirigentes cubanos. Veja como Obama está grisalho, Obama está sempre rindo, olha que mulher de classe é Michelle. Visita histórica, muito bem. Os consabidos tambores e pratos. E como será a pós-história? Alguma coisa vai mudar? A cada dia é mais evidente: as pessoas desejam, necessitam, quase que imploram, e esperam, confiantes ou desconfiadas. Cansadas de tanta história, precisando de esperança e espaço. Ar, precisam de ar... Mario Conde, porém, continua pensando o mesmo e nem se questiona: Obama veio, está, irá embora e, conforme advertiu há anos o grande filósofo Jean-Paul Sartre, no fim a vida continua igual. Ou foi Julio Iglesias que disse? Tanto faz, caralho: o terrível é que também há indivíduos a quem não interessa que mude nada, porque, se mudar alguma coisa, podem eles mudar. Entretanto, no fim, mais cedo ou mais tarde, alguma coisa vai mudar, Conde também acha." (pp. 223-4) - Trecho da narrativa de Mario Conde (2016)
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