Krishnamurti Góes dos Anjos - Destinos que se cruzam
A capa do mais recente livro de Krishnamurti Góes dos Anjos nos apresenta uma fachada na Ladeira do Carmo, Pelourinho, no centro histórico de Salvador, com um pensamento ainda atual do filósofo grego Heráclito de Éfeso (aprox. 500 a.C. - 450 a.C.): "A única coisa permanente é a mudança". De fato, as mudanças foram constantes na então cidade da Bahia durante o período de 1906 a 1925, no qual é narrado este romance histórico. A necessidade de reformas urbanas, incluindo o saneamento básico e a construção da infraestrutura portuária, propiciou a chegada de imigrantes europeus que vieram se juntar à mão de obra local, basicamente formada por negros recém-libertos, originando uma miscigenação racial nem sempre pacífica e "uma terra abarrotada de revolta e resignação", conforme a interessante reflexão de um dos personagens.
Deve-se ressaltar o dedicado trabalho de pesquisa histórica do autor ao reconstituir os movimentos reivindicatórios dos trabalhadores da época, assim como as reclamações dos patrões por conta dos impostos extorsivos e de uma máquina burocrática ineficiente (parece que nessa área nada mudou), contribuindo ainda para a autenticidade do contexto histórico a inclusão de notícias reais dos jornais locais como epígrafe de cada capítulo. A narrativa principal tem como base as reviravoltas na vida de três irmãos italianos da família Alfano: Gaetano, Antonio e Carmine, que se estabelecem na Bahia para instalação de uma fábrica de camas de ferro. Também com base em fatos reais, compõe o pano de fundo da trama o assassinato do líder trabalhista João de Adão, que ficou conhecido como o "Crime do caminho novo" na imprensa daquele período.
"Agora, observando a imensidão verde do mar, na amurada do navio, Gaetano deseja ardentemente o término daquela viagem que o prendia pelo oitavo dia consecutivo. Comentava-se entre os passageiros que logo estariam chegando à cidade da Bahia. Contudo, uma insatisfação, um sentimento imenso de perda, fazia sua memória desfilar tumultuosamente as cenas de sua vida com a doce Beatrice em São Paulo. Lembrava-se da chegada à hospedaria dos imigrantes, do rigoroso serviço de cadastrament, de desinfecção e profilaxia, que consistia em aplicar em todos os imigrantes e suas bagagens, um vapor sulfuroso fedorento que fez com que Beatrice torcesse de forma engraçada o nariz. Sua memória lhe mostrava a imagem da mulher em pé no meio do salão de paredes de tijolos requeimados, forro de estuque e chão ladrilhado. Tudo para prevenir as doenças que eles poderiam trazer." (p. 14)
A epopeia da Alfano & Cia, Grande Fábrica de Camas de Ferro, assim como outras tentativas de industrialização na Bahia do início do século XX, normalmente resultaram em falência devido aos impostos estaduais. A política, "que é como um tiro no meio de um concerto", em citação de Stendhal, também não ajudava em nada as iniciativas dos empresários: "Os chamados 'chefes políticos' sempre tiveram profundas raízes monárquicas e eram fiéis representantes das classes agro comerciais. Política no Brasil sempre foi sinônimo de personalismo – entendido como uma instituição composta por um conjunto de quase-parâmetros, quais sejam, redes de parentesco, grau de influência política, acesso a privilégios e reserva de mercado."
"No amanhecer do dia 14 de agosto de 1913, uma quinta-feira, às 7 horas da manhã, a massa de trabalhadores do porto de Salvador, que incluía uma multidão de saveiristas, carroceiros, pescadores, carregadores, ambulantes e quituteiras de todo tipo de alimento, descia o chamado Caminho Novo para começar mais um dia de trabalho. Em meio à multidão, ia caminhando tranquilamente João de Adão, trajando seu terno de casimira listrada, camisa azul, gravata roxa, chapéu de palha, meias pretas e sapatos amarelos. A multidão foi surpreendida pelo estrondo de um disparo de arma de fogo. Susto, pânico, gritos e correrias. Outro tiro e ainda outro. E João de Adão foi baleado nas costas sem sequer ter tido tempo de defender-se. Tombou cadáver no meio da rua em meio a uma poça de sangue..." (p. 71)
O romance sintetiza as dificuldades na formação do povo brasileiro que, devido à herança de ter sido uma feitoria escravista colonial, desenvolveu um sentimento nacional composto por "uma mistura de mania de grandeza de braço dado com uma sina de derrotados", como comenta Gaetano Alfano, um dos protagonistas. De qualquer forma, prefiro a análise apaixonada de Darcy Ribeiro (1922-1997) que considerava o nosso país uma nova Roma tardia e tropical, lavada em sangue negro e índio: "Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra".
"Eu não sei o que acontece com esse povo, doutor Egas. Nesses poucos anos em que estou no Brasil, o que observo por toda parte, com ligeiras variações de intensidade, é uma baixa estima do povo, uma inferioridade que se contenta com muito pouco, e não admite mudanças. É como se os brasileiros não conseguissem se livrar da mácula da escravidão, e de colônia dominada, que continua a existir sob outras máscaras. O brasileiro precisa desaprender esse pessimismo convivendo com apática esperança religiosa. Tudo que se pretende mudar de verdade aqui, esbarra na tradição poderosíssima da permanência... Não se mira no exemplo concreto daqueles que querem fazer diferente, que querem mudar a sociedade para melhor, parece-me que não suportam olhar horizontes mais largos. E estranhamente, por outro lado, há aqui uma mistura de mania de grandeza de braço dado com uma sina de derrotados, tudo junto e misturado..." (p. 118)
Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Destinos que se cruzam de Krishnamurti Góes dos Anjos
Comentários