Samanta Schweblin - Kentukis
Samanta Schweblin é uma das escritoras argentinas de maior destaque na cena literária atual, tendo herdado o estilo fantástico ou realismo mágico, como ficou mais conhecido, consagrado por alguns conterrâneos seus, tais como: Jorge Luis Borges, Bioy Casares, Silvina Ocampo e Julio Cortázar. Ela venceu o prêmio Casa de las Américas de 2008 por "Pássaros na boca", uma coletânea de narrativas curtas estranhas e perturbadoras. O romance "Kentukis" é uma exclente oportunidade para conhecer o trabalho da autora, lançado originalmente em 2018 e selecionado na longlist do International Booker Prize de 2020 em tradução para o inglês com o título "Little Eyes"; uma obra original e surpreendente que nos faz refletir sobre o impacto da tecnologia em nosso cotidiano.
Samanta imagina uma realidade semelhante à que vivenciamos hoje nas redes sociais com o constante conflito entre exposição e anonimato. Os kentukis são uma nova opção no mercado para aqueles que querem ver ou os que querem ser vistos. O consumidor compra um bichinho de pelúcia por 279 dólares no formato de um dragão, coelho, corvo ou toupeira, em uma gama de cores diferentes, com a condição de aceitar ser observado pela câmera acoplada nos olhos desses dispositivos e será monitorado por outra pessoa – definida de forma aleatória e anônima –, que irá controlar os movimentos do animal ao ativar um cartão de conexão vendido à parte. Estabelece-se então uma estranha e consentida relação entre dois desconhecidos com as mais estranhas consequências.
"A tela voltou a piscar. 'Número de série aceito'. Não tinha um computador de última geração, mas o seu servia para o uso que lhe dava. A segunda mensagem dizia 'conexão de kentuki estabelecida', e em seguida um programa novo se abriu. Emilia franziu o cenho; para que serviam essas mensagens, se eram indecifráveis? Irritavam-na, e quase sempre estavam relacionadas com os dispositivos que seu filho lhe enviava. Para que perder tempo tentando entender aparelhos que nunca voltava a usar, isso era o que se perguntava toda vez. Olhou a hora. Já eram quase seis. O rapaz telefonaria para perguntar o que tinha achado do presente, então fez um útimo esforço para se concentrar. Na tela, o programa mostrava agora um teclado de controles, como quando jogava batalha naval no telefone do filho, antes de essa gente de Hong Kong levá-lo embora. Em cima dos comandos, um alerta propunha a ação 'acordar'. Selecionou-a. Um vídeo ocupou quase toda a tela e o teclado de controles ficou resumido às laterais, simplificado em pequenos ícones. No vídeo, Emilia viu a cozinha de uma casa. Perguntou-se se poderia ser o apartamento de seu filho, embora não fosse o estilo dele, o rapaz nunca teria uma casa tão bagunçada nem entulhada de coisas. Havia revistas sobre a mesa, debaixo de latas de cerveja, xícaras e pratos sujos. Atrás, a cozinha aberta a uma pequena sala, nas mesmas condições." (pp. 13-4)
A peruana Emilia é uma aposentada solitária que sente a falta do filho, desde que o mesmo se mudou para trabalhar em Hong Kong. Ela recebe um cartão de conexão de presente e ativa o comando de um coelhinho kentuki comprado por Eva, uma jovem alemã que reside na pequena cidade de Erfurt. Neste caso, ocorre uma relação de afeto entre as duas mulheres – cada uma carente a seu modo –; Eva tratando o kentuki como um bichinho de estimação e Emilia estabelecendo uma rotina diária de horários para acompanhar os detalhes do cotidiano de sua "ama". No entanto, as coisas se complicam quando Emilia testemunha um comportamento hostil do namorado de Eva.
Por que as pessoas escolhem ter um kentuki e se transformar em um "amo" ou ser um kentuki, controlado por um tablet, por meio de uma conexão remota aleatória, é uma pergunta difícil de ser respondida, tanto quanto explicar os comportamentos bizarros e o acesso indiscriminado às nossas informações pessoais na internet que acompanhamos na vida real e também em tempo real, diga-se de passagem. A conexão estabelecida é única e uma vez desfeita por qualquer das partes, não pode ser reconstituída, significando portanto a morte do bichinho, ou "artefato de estimação", uma espécie de "celular com patas" como definido por uma das personagens.
"Havia bosques e arvoredos, que começavam a alguns metros desta grande residência onde eles tinham sido hospedados, e a luz forte e branca em nada lembrava os tons ocre de Mendoza. Isso era bom. Isso era o que ela queria havia alguns anos, mudar de lugar, ou de corpo, ou de mundo, o que quer que pudesse acontecer. Alina olhou o 'kentuki' – assim o apresentavam na caixa e assim o chamavam no manual do usuário. Estava no chão, sobre o carregador, ao lado da cama. A luz do display da bateria ainda vermelha, e as instruções diziam que, na primeira vez, era preciso carregar a bateria por ao menos três horas. De modo que tinha que esperar. Pegou uma mexerica da travessa e passou pela sala descascando-a, assomando-se de quando em quando à pequena janela da cozinha para ver se alguém entrava ou saía dos ateliês. O de Sven era o quinto, ela ainda não havia descido para conhecê-lo. Nunca o tinha acompanhado a uma de suas residências artísticas, por isso media os próprios movimentos, tomando cuidado para não o incomodar nem invadir seu espaço. Propusera-se a fazer o necessário para que ele não se arrependesse de tê-la convidado." (p. 17)
A argentina Alina acompanha o namorado em uma residência artística no México e decide adquirir um kentuki para ocupar o seu tempo livre, contudo a estranha relação irá despertar um comportamento violento de sua parte. Na Itália, Enzo é um pai separado que compra um kentuki para o filho, aconselhado pela ex-mulher e a psicóloga do menino, mas aos poucos percebe que está correndo um grande risco ao desconfiar que pode haver um pedófilo do outro lado da câmera. É realmente impressionante a variedade de situações que são originadas quando os usuários permitem que um estranho tenha acesso às suas informações pessoais, mas não é exatamente isso que acompanhamos diariamente nas redes sociais? Quem está usando as nossas informações e com qual finalidade?
Apesar do formato romance, o livro funciona como uma coletânea de contos, uma vez que os capítulos encerram algumas narrativas independentes, mas outras avançam intercaladas por todo o romance, tornando o interesse na leitura constante ao alternar passagens aterradoras com outras bem-humoradas. Uma obra recomendada de uma grande autora contemporânea que vale a pena conhecer.
"– Pare de me olhar assim – disse Enzo –, pare de me perseguir pela casa feito um cachorro. / Tinham lhe explicado que o kentuki era 'alguém', então sempre o tratava com formalidade. Se o kentuki andava entre suas pernas, Enzo protestava, mas era só brincadeira, começavam a se dar bem. Embora nem sempre tenha sido assim, no começo foi difícil se acostumar, e, para Enzo, sua simples presença era suficiente para incomodá-lo. Era um inverno cruel, o menino nunca tinha nada para fazer e ele tinha que andar o dia inteiro desviando de um bicho de pelúcia pela casa. Sua ex-mulher e a psicóloga do menino tinham lhe explicado, juntas, em um 'tribunal de mediação', enumerando em detalhes por que ter um desses aparelhos seria bom para o filho. 'É um passo a mais para a integração do Luca', dissera a ex-mulher. Sua sugestão de adotar um cachorro as deixou atônitas: Luca já tinha um gato na casa da mãe, o que ele precisava então era de um kentuki na casa do pai. 'Temos de explicar tudo de novo?', tinha perguntado a psicóloga." (p. 28)
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