Fernanda Caleffi Barbetta - 1+1=2 | 2-1=0
A obra de Fernanda Caleffi Barbetta, vencedora do VII Prêmio Cepe Nacional de Literatura na categoria Romance, surpreende primeiramente pelo título pouco usual e, no decorer da leitura, pela estrutura fragmentada na voz de uma protagonista-narradora adolescente. De fato, a estratégia narrativa fica clara logo na abertura do romance: "Se você conta as coisas que aconteceram na sua vida, elas passam a fazer sentido" e assim, com base neste conselho de sua psicóloga, a esperta Luiza, ou Izinha como é chamada desde pequena, inicia literalmente uma contagem aos 14 anos, 9 meses e 1 dia, que continuará ao longo de todos os capítulos, descrevendo em retrospectiva a sua trágica história de solidão e abandono desde os oito anos.
Do seu pai, Izinha lembra e sabe muito pouco, apenas o que ouviu falar: "Além de me ensinar que ele era um canalha, minha mãe não me ensinou mais nada sobre meu pai. Nem a vizinha." Já o segundo abandono, marcado pela morte da mãe, deixa marcas profundas na pequena protagonista que vai morar em outra cidade aos cuidados da tia Nancinha que, na verdade, não é tia e, depois de impor maus-tratos à menina, irá abandoná-la sem documentos no orfanato Casa Meninas de Luz, onde Izinha passa a conviver com Lena que logo se torna sua melhor amiga: "A Lena tinha os olhos maiores e mais bonitos do que os meus, um pouco puxados nos cantos, sua pele era macia, sem nenhuma pintinha, sua postura era perfeita, sua risada era gostosa de ouvir."
"Quando penso na minha mãe, vejo o rosto da vizinha bem perto do meu, sua boca bem perto da minha, o hálito de tangerina, 'ela está com a doença ruim, precisa descansar' [...] Não adiantou o descanso, não adiantaram as visitas ao médico, não adiantaram os medicamentos, 'ela tomou um remédio fica quietinha', não adiantou a ambulância em uma tarde nublada, não adiantaram os dias e noites no hospital, não adiantou rezar, 'reza, minha filha, Deus ouve melhor as crianças', porque aquela doença ruim (tão ruim que ninguém dizia o nome) levou minha mãe embora. [...] No enterro, me deixaram em uma salinha com 12 folhas de papel branco, 8 canetinhas coloridas, 'porque cemitério não é lugar de criança', e eu não soube o que desenhar. Até que uma senhora abriu a porta, colocou a cabeça para dentro e disse 'acabou, agora ela está no céu'. [...] Acabou (6 letras). [...] Nem sempre as crianças e as mães estão no lugar onde elas deveriam estar." (pp. 17-19)
A sorte de Izinha parece estar para mudar quando ela é escolhida para ser adotada por um casal que perdeu a filha da mesma idade. No entanto, a escolha tem origem em uma espécie de traição involuntária à sua melhor amiga Lena, primeira opção do casal, que acaba optando por Izinha depois de uma apresentação de canto. Na nova casa, confortável e segura, apesar do carinho dos pais adotivos, fica claro que os mesmos buscam uma substituição impossível: "Eu tinha sempre a impressão de estar no lugar errado, principalmente quando minha mãe Janete se surpreendia comigo entrando na cozinha, saindo do quarto, sentada no sofá, chegando no topo da escada. Ela dava um pulinho para trás e falava (não dava para perceber se era uma pergunta ou uma afirmação) 'você?', e eu não me surpreendia querendo ser outra pessoa."
"Foram 87 passos em silêncio até uma casa de paredes verdes, 10 janelas, 4 fechadas, e uma pequena escadinha que dava em uma porta velha com a tinta branca descascada. 'Onde é aqui?', ela me puxou e quase me embaralhei nos degraus, até que chegamos no quarto e último, onde ela me sentou e ajeitou a sacola com cuidado para que não caísse. 'Fica aí quietinha', começou a descer, olhou para trás e mentiu 'eu já volto'. [...] Não sei quanto tempo passou, eu ainda não tinha relógio, mas quando percebi que a tia Nancinha não ia voltar, achei melhor ver se alguém naquele casarão poderia me ajudar. Levantei, esbarrei na sacola, que caiu, e bati na porta 6 vezes, 1, 2, 3, 4, 5, 6, porque achei que, como a minha batida era fraca e eu estava mais fraca naquela hora, 3 não seria suficiente. Estava quase batendo a sétima quando ouvi passos, depois ouvi quando giraram a maçaneta e ouvi muito bem quando a moça ruiva que me olhou com cara de pena gritou lá para dentro 'outra abandonada'." (pp. 47-48)
Neste original romance de formação é impossível não se emocionar com as reações da pequena Izinha às dificuldades que a vida lhe impõe desde muito cedo em uma sequência de abandonos e substituiçoes. Um livro recomendado, principalmente devido à personagem que vai deixar saudades pela forma simples e verdadeira de nos lembrar de algumas coisas que já havíamos esquecido: "De tempos em tempos, eu pedia 'quero minha mãe', mesmo sabendo que ela tinha morrido, igual quando se chama deus, mesmo sabendo que ele não vai vir. [...] Olhei pela janela bem quando passamos por uma igreja, pensei em rezar, mas não me lembrava de como começava. [...] Às vezes é difícil começar um pai-nosso."
"Deixei o orfanato e entrei no novo carro, que tinha uma nova mãe no banco do passageiro e um novo pai atrás do volante. Ele dirigiu por um caminho todo novo rumo à nova casa, passando por novos postes, novas ruas, novas calçadas, novas pessoas, novas igrejas, novos cachorros, e me lembrei do Pipo e da velha mentirosa, 'cadê o Pipo?', 'não sei de que Pipo você está falando'. [...] No braço direito da poltrona azul da sala tem algumas manchas que minha mãe Janete acaricia assim que se senta para assistir televisão ou ler um livro. Dá 4 passadas leves com os dedos, suspira e se pergunta baixinho alguma coisa do tipo 'por que foi acontecer isso dela morrer tão cedo?' ou 'o que faço agora sem você, minha filha?'. Finjo que não sei das marcas, mas sei exatamente o formato de cada uma das 3 pinceladas de esmalte cor-de-rosa, uma do lado da outra, e fico imaginando mãe e filha (legítima e verdadeira) pintando as unhas, rindo juntas, sujando o sofá sem que nenhuma das duas se importasse que aquelas manchas nunca (nunca) sairiam." (pp.91-93)
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