Décio Torres Cruz - Histórias roubadas

Literatura brasileira contemporânea
Décio Torres Cruz - Histórias roubadas - Editora Penalux - 182 Páginas - Capa e diagramação: Talita Almeida - Lançamento: 2022.

Os contos de Décio Torres Cruz apresentam uma variedade de forma e conteúdo que tornam a leitura do livro dinâmica, proporcionando uma surpresa renovada. Sendo assim, podemos encontrar narrativas aceleradas e bem-humoradas com base somente em diálogos ("Aula de português", "A aluna deslocada e tresloucada" e "Maria Hortência com H"), assim como textos mais longos e refexivos em primeira ou terceira pessoa ("As fronteiras do encantamento" e "O mistério dos jogos mentais"), flertando com a metalinguagem ao combinar elementos de cinema, teatro, literatura e música ("A divina tragédia humana" e "Era uma vez uma cidadezinha") ou, até mesmo, verdadeiras crônicas de viagem ("Margô e seus sonhos postergados" e "As tias").

O conto que inspirou o título do livro, "O ladrão de histórias", aborda o interessante confronto entre realidade e ficção. Até que ponto uma obra literária pode ser considerada original ou uma mera apropriação. Neste caso, Maurício é um médico e escritor frustrado que nunca havia conseguido vencer o bloqueio criativo até decidir narrar os casos que um amigo psicanalista lhe contara em segredo. A partir de um livro de contos formados por esses casos reais, Maurício alcança um enorme sucesso editorial e torna-se uma celebridade, até que os pacientes o denunciam por plágio, provocando um debate sobre ética e direitos autorais. Toda a narrativa é conduzida de forma leve, até mesmo cômica, com um final aberto que apresenta cinco opções para escolha do leitor.

"Maurício era apaixonado por Shakespeare até descobrir que o tal bardo era um grandessíssimo ladrão de enredos. Um dia, durante um plantão, quando não havia mais pacientes a atender, começou a ler um livro sobre a origem das peças deste autor. Ficou revoltado ao descobrir que o maior escritor inglês de todos os tempos havia se apropriado do enredo de histórias orais já existentes previamente ou escritas por outras pessoas. A história do Rei Lear, por exemplo, fazia parte do 'Livro de Linhagens do Conde D. Pedro', escrito em português na era medieval, muito antes de Shakespeare sonhar em existir. O conde de Barcelos pode ter feito uma tradução da versão francesa de 'Wace, Le Roman de Brut', ou diretamente do texto latino, 'Historia Regum Britanniae (c. 1135) de Geoffrey de Monmouth. A história de Lear parece ter entrado para a literatura inglesa através do texto latino. Já 'Romeu e Julieta', a mais famosa história de amor de todos os tempos, Shakespeare havia adaptado de um poema narrativo de Arthur Brooke. Por sua vez, Brooke havia traduzido para o inglês a história contada em uma novela italiana escrita por Matteo Bandello e essa seria a suposta fonte original. E 'Macbeth' é apenas uma adptação que Shakespeare fez da história deste rei, narrada em 'As Crônicas de Holinshed'." (pp. 09-10) - Trecho do conto O ladrão de histórias

Já em "O lamaçal", um dos melhores contos da coletânea, o autor surpreende mais uma vez ao fazer uma ótima incursão no estilo fantástico, consagrado por autores argentinos como Jorge Luis Borges, Silvina Ocampo e Julio Cortázar. O contraste obtido entre a ingenuidade de um menino que é intencionalmente colocado como protagonista-narrador e a ameaça que ronda a cidade, devido à invasão de seres que nunca são descritos em detalhes, amplifica a tensão e o horror implícito nesta estranha história, até o final surpreendente que me lembrou a citação de um grande mestre da narrativa curta, Isaac Bábel (1894 - 1940): "Nenhum ferro pode penetrar no coração humano de maneira tão gélida como um ponto colocado no momento exato."

"Eu e Pedrinho ficamos na porta da escola esperando nosso pai, mas ele não veio nos buscar. Esperamos meia hora e a fome começou a corroer nossos estômagos. Sugeri a Pedrinho irmos andando para casa e foi o que fizemos. Antes de chegar em nossa rua, passamos pela pracinha onde brincávamos. Havia lama por todo canto, cobrindo tudo. No meio da praça, vários alunos mais velhos estavam reunidos, como se tivessem vindo de diversas escolas. Parecia uma gincana fora de época, já que ela sempre acontecia na primavera. Quando íamos nos aproximar do grupo para ver o que estava acontecendo e ouvir direito o que o organizador da gincana falava, vi dois deles passarem na direção do grupo. Voltei a sentir o mesmo cheiro horrível. Depois surgiram mais dois, e mais dois, e mais dois e vários deles tomaram conta da praça, cercando os alunos. Dois outros vieram em nossa direção e desistimos de nos juntar ao grupo. Demos meia-volta, aumentamos o passo e começamos a correr sem olhar para trás. Ainda faltava bastante tempo para as festas juninas, mas ouvimos o barulho de bombas explodindo na praça como se os alunos estivessem comemorando o final da gincana. Sentimos um forte cheiro no ar com a fumaça das bombas. Chegamos em casa esbaforidos, com os olhos ardendo muito." (pp. 39-40) - Trecho do conto O lamaçal

Uma experiência com a metalinguagem é feita em "Estradas possíveis e as trilhas não percorridas", conto inspirado no poema "The road not taken" de Robert Frost (1874-1963) e também citando diretamente Jorge Luis Borges no clássico "O jardim de Veredas que se bifurcam”. Vale destacar "Um dia na periferia da cidade", um retorno ao realismo brutal, apresentando a violência urbana, presente no cotidiano das grandes cidades brasileiras, que ameaça a população desassistida pelo governo após décadas de políticas públicas inadequadas.

"Foi numa aula de língua inglesa que ele ouviu falar do poeta Robert Frost. Tinham acabado de ler um poema na aula que havia mexido muito com a sua cabeça. 'The road not taken', a estrada não percorrida, o caminho não trilhado, falava de nossas escolhas na vida, das estradas que a gente vai tomando e daquelas que a gente deixa de tomar, até chegarmos a uma encruzilhada e darmos de cara com dois tipos de estrada, uma já bastante batida, mais fácil de ser seguida, e outra totalmente virgem, sem ter sido percorrida ainda, por isso, talvez, mais difícil. O poeta preferiu seguir pela estrada nova, concluindo que essa escolha tinha feito toda a diferença. / A cabeça de Matias deu um nó. Começou a pensar nas escolhas importantes de sua vida e as infinitas possibilidades do 'e se...?' E se tivesse feito isso em vez daquilo? Lembrou-se de outro poema que, também o tinha levado ao mesmo tipo de indagação quando o lera na aula de literatura brasileira. O poema de Cecília Meireles, 'Ou isto ou aquilo', também falava de escolhas, mas era binário. Esse de Frost também era, mas fez com que ele se desse conta da gama de alternativas que, agora, atormentavam seu fluxo de pensamentos." (pp. 82-3) - Trecho do conto Estradas possíveis e as trilhas não percorridas

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Décio Torres Cruz é escritor, crítico literário, professor e pesquisador da UFBA e da UNEB. É Ph.D. em Literatura comparada pela State University of New York, EUA, mestre em Teoria da Literatura, especialista em Tradução e bacharel em Letras/Língua Estrangeira pela UFBA. Fez pesquisa pós-doutoral na Inglaterra. É autor dos livros: "Paisagens interiores" (Patuá, 2021), "The Cinematic Novel and Postmodern Pop Fiction" (John Benjamins, 2019); "Literatura (pós-colonial) caribenha de língua inglesa" (Edufba, 2016); "Postmodern Metanarratives: Blade Runner and literature in the age of image" (Palgrave Macmillan, 2014); "O pop: literatura, mídia & outras artes" (Quarteto, 2003; 2013) e diversos livros de ensino de inglês.

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