Deborah Couto - Quase todas sobrevivemos às mães

Literatura brasileira contemporânea
Deborah Couto - Quase todas sobrevivemos às mães - Edtitora 7Letras - 108 Páginas - Foto de capa: Ricardo Gomes - Lançamento: 2024.

O romance de Deborah Couto aborda algumas questões que as mulheres precisam enfrentar ao longo dos primeiros meses da maternidade, um período desafiador devido ao cansaço e a solidão a que as mães são submetidas. De fato, cuidar de um bebê pode gerar sentimentos muito contraditórios às expectativas que a sociedade e a família impõem, sendo muito comum que a culpa e a ansiedade predominem em alguns casos. Os desafios podem se tornar ainda mais complexos em uma situação de isolamento social, como vivenciamos recentemente na terrível pandemia de Covid-19. Esta é a situação imaginada pela autora para a protagonista Cecília que precisará lidar com as suas limitações, assim como o medo de repetir os erros da própria mãe, para cuidar da filha Eva, tudo isso passando por uma irritante convivência diária em um apartamento com o marido Caio e a empregada-babá Andrea.

A narrativa é conduzida alternadamente em primeira pessoa por Cecília e um narrador onisciente em terceira pessoa, demonstrando o ponto de vista de Andrea e sua filha Janaína que vem morar com ela e o casal. Neste ambiente claustrofóbico, os personagens lidam com suas angústias e carências e os conflitos não tardam a acontecer. Todos os personagens são pouco confiáveis em suas intenções e no que a autora deixa transparecer com sutileza, visto que há poucos diálogos, deixando o leitor chegar às suas próprias conclusões mais pelas ações do que pelo que é dito entre eles. No capítulo de abertura, em um fluxo de consciência sobre os primeiros efeitos da pandemia que se aproxima, Cecília desabafa a sua principal preocupação que norteará todo o romance: "Como é que eu vou fazer sem Andrea?"

"Caio aparece com o telefone na mão. Vem falando de um vírus ultracontagioso. Menciona um casamento de uma celebridade em que várias pessoas se contaminaram. A doença é séria. Destrói o pulmão. Mata por falta de ar. Parece que a velocidade do contágio está assustadora. Agora, na pousada, só se fala nisso, parece que vão ter que fechar. Ouvi alguém dizer na recepção que não aceitam mais check-in. Uma mulher vem correndo avisar ao marido que vão ter que antecipar o voo. Ao que tudo indica a solução imediata é o isolamento. Cada família em sua casa. Isolamento seria uma solução imediata para alguns problemas meus. A convivência com a minha mãe, por exemplo. E com diversas outras pessoas que seria mais fácil se não existissem. Ouço, da varanda, o tom desesperado das conversas. Em pouco tempo vamos nos dando conta da gravidade da situação. Até então não tinha me parecido o fim do mundo. Vamos ter que ficar sem contato com mais ninguém. Dispensar a Andrea. Estocar comida, talvez? Cuidar da faxina. Até tudo melhorar. [...] Puta que pariu. Como é que eu vou fazer sem Andrea?" (pp. 11-12)

Apesar dos riscos envolvidos, Cecília traz Andrea para permanecer no apartamento com a famíla, tornando-se cada vez mais dependente dela, em termos práticos e emocionais, ao mesmo tempo em que se afasta do marido Caio, envolvido em intermináveis reuniões virtuais e sem tempo para perceber a infelicidade da mulher. Uma situação que deve ter ocorrido em inúmeras famílias da classe média, forçadas a uma convivência diária que muitas vezes – de forma contraditória – distanciava mais do que aproximava as pessoas: "Eu tento adivinhar de que forma Eva sobreviverá a mim, principalmente quando Andrea for embora. quem é, senão ela, que vai evitar que eu enlouqueça. Caio ainda está no escritório envolvido em alguma reunião. Por quanto tempo?"  

"Cecília era infeliz. Tinha tudo, mas não tinha nada. Não tinha amigas. Só o pessoal do escritório e Caio. Depois do parto, Andrea passou a ser a única pessoa de confiança. Engraçado confiar numa estranha assim, achava. [...] Andrea, que já tinha visto centenas, talvez milhares, de mães entrando e saindo da maternidade, sabia que aquele cansaço não era só o bebê. A culpa, a insônia e outros transtornos não são obras da criança, embora ela tenha suas necessidades vitais. O choro da sobrevivência. Às vezes ele não é suficiente e a criança fica magrinha. Depois, triste. É assim que se passa uma tradição de geração para geração. [...] Andrea fazia o que podia. Estava lá por isso. Então preenchia as lacunas ajudando com o leite, com a casa, com o colo e com o que Cecília deixasse despencar. E quanto mais colo Andrea dava, quanto mais comida fazia, mais o buraco de Cecília aumentava." (pp. 18-19)

Um romance recomendado e de intensa carga psicológica que mostra a fragilidade dos personagens em diferentes níveis, além de ser também uma importante crônica sobre a pandemia, uma época após a qual nunca mais fomos os mesmos, como descreve Cecília neste trecho: "Não sei mais em que dia estamos, é de manhã e estou com Eva montando peças de Lego em frente à TV. Ainda não escovei os dentes ou lavei o rosto. Acho que, não só para mim, imagino, os dias vêm perdendo seu contorno e tornando difícil manter uma rotina sã. A casa está mais barulhenta. A TV ligada o dia todo e Caio falando. Caio fala cada vez mais alto. [...]"

"Quando me casei com Caio minha mãe me cobrou gratidão por sua educação. Por ter me feito uma moça bem-criada, que me levou a fazer escolhas como aquela — a de meu marido. A verdade é que eu sobrevivi a ela e me casar com Caio era uma continuação daquela sobrevivência. Como tinha sido ir morar na Itália para estudar, como tinha sido sair de casa para dividir o apartamento com uma amiga. Me casar era uma associação a outra pessoa que não ela. Minha irmã, que tinha sido mais esperta, percebeu isso antes de mim. E eu — penso hoje, não quando escolhi me casar — poderia ter tomado qualquer outra atitude. Me mudar de país, ou mesmo de cidade. Investir em uma carreira que me tornasse uma autoridade, ser muito realizada. Mas não percebi que sobrevivi a ela seguindo exatamente seus passos. / Quando meu pai nos deixou minha mãe enlouqueceu e, naturalmente, se arrependeu de ter tido filhos, filhas, no caso, nós. Nesse momento ela desapareceu emocionalmente, e sentimos, eu e minha irmã, que essa era sua forma de nos punir. Ainda éramos meninas e ficamos órfãs de pai e mãe vivos. Ao mesmo tempo a ausência os fez cada vez mais presentes em nossas vidas, porque minha mãe ameaçava se matar caso não comunicássemos nosso pai disso, do que seu abandono estava causando. E lá íamos nós atrás dele." (p. 59)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre a autora: Deborah Couto é jornalista e escritora, com passagens por redações de veículos como Folha de S. Paulo e Editora Abril. Além das redações, acumula experiências em agências de publicidade e marketing e empresas de tecnologia somadas a mais de duas dezenas de oficinas literárias. Lançou seu primeiro romance, “Quase Todas Sobrevivemos às Mães” em 2024 pela editora 7letras.

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