Hiromi Kawakami - A valise do professor

Literatura japonesa contemporânea
Hiromi Kawakami - A valise do professor - Editora Estação Liberdade - 232 Páginas - Tradução de Jefferson José Teixeira - Imagem de capa: Casa noturna em Shinjuko, Tóquio - Robert Harding - Lançamento no Brasil: 2010.

A literatura japonesa contemporânea não depende só de Haruki Murakami. Prova disso é o romance "A valise do professor" da premiada escritora Hiromi Kawakami, ainda pouco conhecida no Brasil. A história é narrada por uma solitária protagonista de 37 anos chamada Tsukiko Omachi. Ela não é casada e não tem namorado ou amigos, até que encontra Harutsuna Matsumoto, que foi seu professor no ensino médio no mesmo bar que frequenta, por sinal um costume pouco usual no Japão, mulheres desacompanhadas em bares. Como ela não lembra o seu nome passa a chamá-lo apenas de professor e, apesar da diferença de idade de quase trinta anos, os dois se identificam em sua solidão e nos gostos culinários, formando um casal muito peculiar, encontrando-se sempre por acaso no mesmo bar.

O que chama a atenção no estilo da autora é a simplicidade com que conduz a narrativa, sem explicitar uma relação romântica, prendendo a atenção do leitor apenas pela empatia que os personagens despertam devido à sua inadaptação com o mundo real. De fato, aos poucos, Tsukiko desenvolve um sentimento de dependência além da mera amizade com o professor, um homem maduro e tradicional que se encanta com a ingenuidade da antiga aluna. Assim como outros mestres da literatura japonesa, Hiromi Kawakami apresenta muitas referências à cultura e as tradições locais, neste caso principalmente a gastronomia, contudo é seduzida pela influência ocidental moderna, fato que fica evidente pelo constante estado de equilíbrio entre passado e futuro na cidade de Tóquio.

"Nessa noite bebemos ao todo cerca de cinco frascos de saquê. Ele pagou a conta. Na vez seguinte em que nos encontramos no mesmo bar para beber, foi minha vez de pagar. A partir da terceira vez separamos a conta, e cada um pagou a sua parte. Esse sistema continua desde então. O temperamento de ambos foi provavelmente a razão de termos continuado a frequentar o estabelecimento assiduamente. Sem dúvida, não só a preferência pelos tira-gostos é semelhante, como também a forma de se relacionar com as pessoas. Apesar da diferença de idade, mais de trinta anos, sinto-me muito mais próxima dele do que de amigos da mesma faixa etária. / Visitei diversas vezes a casa do professor. Saindo do bar, algumas vezes íamos a um outro, ou então voltávamos cada qual para sua casa. Em raras ocasiões visitávamos um terceiro ou quarto estabelecimento e, depois disso, em geral terminávamos tomando a saideira na casa dele." (pp. 13-14)

Um ponto de inflexão na narrativa acontece quando o inusitado casal decide comparecer ao Festival das Cerejeiras na antiga escola. Lá ela encontra Takashi Kojima, um ex-colega com quem namorou brevemente no passado e que agora está divorciado. Ele se interessa por ela e tenta reatar o relacionamento. Neste mesmo evento, o professor revê a Sra. Ishino, a bela professora de artes. Por algum tempo o relacionamento do professor e Tsukiko é interrompido e o ciúme, da parte dela, demonstra como a estranha relação se consolidou apesar de tudo. O professor então a convida para viajar até uma ilha que tem relação com o seu misterioso passado e a ex-mulher. A viagem será uma prova definitiva da viabilidade de se tornarem um casal verdadeiro.

"Permaneci em casa até o anoitecer. Passei o tempo folheando distraidamente um livro. Assomou-me novamente o sono e dormi por cerca de meia hora. Acordei e ao abrir a janela o exterior já estava envolto pela escuridão. No calendário já estávamos no início da primavera, mas os dias ainda eram curtos. Agrada-me mais a brevidade dos dias por volta do solstício de inverno, parecendo nos perseguir. Quando se está consciente de que logo anoitecerá inevitavelmente, é possível preparar o coração dentro da leve e elegante escuridão que convida àquele arrependimento próprio ao lusco-fusco. No crepúsculo de agora somos atraiçoados: os dias se alongam e nos levam a crer que ainda não anoiteceu ou que falta mais um pouco para anoitecer. Ah, é noite, pensamos, e no instante seguinte o desânimo acaba nos invadindo com força. / Portanto, saí. Na rua, quis confirmar que eu não era a única pessoa viva, que não era apenas eu a sentir a desolação de viver. Todavia, era impossível verificar isso olhando apenas as pessoas passando. Por mais que desejasse intensamente, não era possível confirmar nada." (pp. 89-90)

O tema central do livro é a solidão nas grandes cidades e a busca por algum significado, onde parece não haver nenhum. E, no entanto, uma relação como a de Tsukiko com o professor pode acontecer quando menos se espera: "Nos últimos tempos não havia ninguém a não ser ele que me acompanhasse para beber, andar na rua ou assistir a algo agradável. Não consigo me lembrar com quem eu fazia esse tipo de coisa antes de me tornar íntima do professor." Apesar do tom melancólico, o livro representa algum tipo de esperança de que as pessoas, mesmo diferentes, possam compartilhar uma pequena felicidade ainda possível.

"Fazia bom tempo no sábado. Era um dia quente, raro no outono, que me fazia sentir calor com a minha camisa de mangas compridas um pouco grossa. Depois da experiência ruim de nossa viagem recente, decidi não usar vestidos ou sapatos de salto alto, aos quais não estou acostumada. Vesti uma calça de algodão com uma blusa de mangas compridas. Calcei mocassins. Pressenti que o professor me diria que eu estava parecendo um homem, mas não me importe. / Parei de me preocupar com as intenções do professor. Sem aproximações. Sem afastamentos. Cavalheiresco. Feminino. Um relacionamento superficial. Decidi que seria assim. Sóbrio, longo, sem exigências. Por mais que tente me aproximar dele, ele não me dá chance. Parece existir entre nós um muro de ar. À primeira vista tão leve a ponto de de não se poder segurá-lo e, quando contraído, acaba repelindo tudo. Um muro de ar." (p. 207)

Literatura japonesa contemporânea
Sobre a autora: Nasceu em Tóquio em 1958. Estudou ciências biológicas na Universidade de Ochanomizu e foi professora até 1994, quando estreou na literatura com o romance Kamisama [Deus]. Com Hebi o Fumu [Pisar Uma Cobra] recebeu em 1996 o Prêmio Akutagawa. Desde então, vem sendo reconhecida e laureada em diversas premiações importantes, inclusive com o Prêmio Tanizaki de 2001, por A valise do Professor. Uma das escritoras japonesas mais lidas na atualidade, Kawakami vem se impondo no mundo literário com a tonalidade extremamente peculiar de seu estilo, ao mesmo tempo refinado e enxuto, onde os temas privilegiados são o dia a dia metropolitano, o charme das metamorfoses da vida, o amor e a sexualidade.

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