Whisner Fraga - As fomes inaugurais
Whisner Fraga nos apresenta uma coletânea de 55 minicontos com diferentes abordagens sobre a exclusão social e, principalmente, a desumanização das pessoas em situação de rua, uma realidade que é sustentada pela ideia de que os indivíduos sejam empreendedores de si mesmos, ou seja, capazes de custear os seus próprios gastos com saúde, educação, saneamento, moradia e outras necessidades básicas que deveriam ser garantidas pelo Estado e suas instituições políticas, sociais e religiosas, caso contrário, tornam-se pessoas inviáveis e cidadãos dispensáveis nas grandes cidades, destituídos do direito de ter direitos e aumentando continuamente a legião de excluídos sem possibilidade de acesso mínimo à dignidade e cidadania.
Apesar do caráter de denúncia social da obra e do pouco espaço de manobra decorrente da estrutura dos minicontos, o texto é marcado pelo lirismo e o ritmo que são próprios da construção poética, fato que fica evidente ao lermos cada trecho pausadamente e em voz alta, um estilo que consolida cada vez mais o nome de Whisner Fraga no cenário da literatura brasileira contemporânea. De fato, a concisão e a necessidade da palavra exata, parecem amplificar a urgência da mensagem, evidenciando o absurdo dos impasses existenciais e morais a que a nossa sociedade está cada vez mais exposta. Vale destacar também que aqui reencontramos a figura de Helena, a misteriosa interlocutora e confidente presente em outros livros do autor.
"desmistificaremos a militância, helena: aliciamento e regalias e planilhas orçamentárias de partidos projetadas em convenções precisam de aportes, armas são caras, impulsionamentos em redes sociais são caros, subornos são caros, campanhas de conscientização são caras, licitações são caras, brindes, cartazes, faixas, helena, colchões, cobertores, botas, tickets: caros, e a origem dos depósitos que darão fôlego à luta?, não se inquiete, é por uma ótima causa, helena, eu juro, apesar da corrupção, é a lida, fundamental é a abundância: o ativismo, o partido, a entidade, os desvalidos reconhecem: um dia o município ficará abarrotado de estátuas de bronze em minha homenagem e, helena, elas não são baratas." (p. 14) - Conto "o apetite incorruptível"
O livro de Whisner Fraga revela a hipocrisia de um discurso pretensamente moralista, seja por parte da igreja ou das organizações de segurança, que contrasta com as raras ações de empatia vinda dos serviços de assistência social em atendimento à população de rua. E, no final, o resultado é uma sociedade que prefere esconder o problema, até mesmo com uma certa crueldade, do que tentar resolvê-lo, como bem resumido no posfácio de Hugo Almeida: "Expulsos da calçada e de outras exiguidades, os personagens, gente de carne e alma como todos nós, se instalam no canteiro central da avenida, na esperança de que ali possam permanecer. Até quando? [...]".
"tudo tem limite, eles ficam se embriagando nos arredores, uma vez eu o vi fumando baseado, bafora a fumaça na boca do cachorro dele, um animal monstruoso, peludo, imprevisível, ambos ficam estranhos, eu fotografei, nós cercamos a igreja com grades, o sacerdote não tolera obscenidades na morada de cristo, coitados, são seres humanos habituados à mordomia, o que é nefasto, pois isso estimula empreendimentos danosos: se drogam, até um cego vê: e o ânimo para trabalhar?, e olha que a bíblia exige, o trabalho dignifica, né?, são seres humanos, mas tudo tem um limite, deus sabe que sim, ocasião de sumir com eles, converso com minhas amigas, não suportam, é hoje, quem se interessar, estarei no saguão às oito." (p. 38) - Conto "mensagem"
Um texto forte para um tema que precisa constar das agendas governamentais. Os minicontos funcionam como recortes do cotidiano, nada que não tenhamos presenciado no quarteirão mais próximo de nossa própria residência. Contudo, nem sempre percebemos a banalidade da violência que agride diariamente esses homens e mulheres à margem da sociedade, definidos como um grupo populacional heterogêneo, que possui em comum a pobreza extrema e os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados mas, apesar de tudo, ainda assim humanos.
"O pm assoma, milagrosamente, ao lado da mulher, a lei estabelece: um metro e meio da calçada desobstruída, possibilitando a passagem de pedestres, puxa a trena: um metro e vinte, empurra uma trouxa: um metro e trinta e nove, o obstáculo é você, adverte, maneja o cassetete, ordena que o siga à delegacia: fazer o quê com ela na delegacia?, encargo difícil esse de tomar decisões, o colega sai do automóvel: ela vem conosco, no caminho decidimos." (p. 39) - Conto "a mansidão é um azar"
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