Jairo Carmo - Belas viúvas
O romance de Jairo Carmo é ambientado na passagem de 1984 para 1985, uma fase de transição em nosso país que marcou o início do processo de redemocratização com a eleição de Tancredo Neves pelo Colégio eleitoral em 1985, a posse forçada de José Sarney devido à inesperada morte de Tancredo e a futura eleição direta de Fernando Collor em 1989 — a primeira realizada pelo voto popular desde 1961 — encerrando o longo período de governo dos militares que se alternaram no comando do poder Executivo. De fato, a influência do regime autoritário é marcante na narrativa devido ao clima de repressão política, prisões, torturas e desaparecimentos nunca esclarecidos, assim como as citações à Guerrilha do Araguaia, que ocorreu de 1972 a 1974.
Na primeira parte do livro, "Reza aos mortos", o autor conecta os eventos políticos no Brasil com a trajetória da protagonista Marta Benício que enfrenta uma crise existencial ao se tornar viúva do ex-senador Aníbal Pinheiro. Marta relembra passagens da história do casal que se conheceu no ano de 1937 em Santarém no Pará e a convivência com outros personagens, tais como os filhos Jorge Aureliano e Elisabete, o ministro Lourenço Fialho e o médico Evandro Reis em diferentes locais do país, seja no interior da Amazônia, Brasília ou Rio de Janeiro. O choque pela morte do marido e a incerteza com o futuro, marcam o início do romance: "A viuvez fez de Marta Benício um vale de lágrimas. Completamente desfigurada, parecia um espantalho; irreconhecível."
"Nascemos com um aguilhão que filtra nossa energia vital, energia que a Bíblia nomeia de sopro da vida. Lembra a tourada espanhola. O touro surge com força descomunal, rodopia como um furacão. Aí intervém o picador, figura sinistra e criminosa, cuja função é tirar a força do touro. Preste atenção a uma criança, a um jovem, a energia deles é inesgotável. Nosso picador é o tempo. Chegamos à morte como o touro no fim das touradas, completamente sem forças, porque toda força vazou nas estocadas do aguilhão ensanguentado. Esse aguilhão ensanguentado Marta Benício o viu em pesadelo na segunda noite de viúva. Na manhã dessa noite, ela demorou a se levantar. Permaneceu longas horas debaixo dos lençóis com os olhos fechados, indiferente às súplicas de Yvonete." (p. 22) - Trecho da Parte I - Reza aos mortos
Na segunda parte, "Pecados íntimos", mesmo sob o rígido patrulhamento moral da época, algumas passagens evidenciam desvios na fidelidade entre Aníbal e Marta no passado, principalmente na ambiguidade da relação com outro casal amigo: Lourenço Fialho e a carioca Eneida, mulher do ministro, que apimentava a amizade com doses de sensualidade: "[...] Os desejos se multiplicam, são a fonte que alimenta nosso amor à vida. Eneida gostava de Aníbal Pinheiro porque tinham gostos parecidos, só que havia algumas extravagâncias. A pior delas: Eneida se comportava como Leila Diniz na praia de Ipanema. Fazia topless na frente de Lourenço Fialho e Aníbal Pinheiro. Feminista de carteirinha, agredia os bons costumes; aplaudia a liberdade sexual."
"Lourenço Fialho e Aníbal Pinheiro travaram amizade na Câmara dos Deputados, ambos no exercício do primeiro mandato. Eneida, esposa de Lourenço Fialho, se afeiçoou de não largar Marta Benício. Não perdiam jantares, cinema, recepções. Carioca da gema, Eneida tinha bom gosto. As roupas falam, ela dizia entre risos, e emendava: 'Temos de fascinar os homens como uma Ferrari'. Na viagem dos quatro a Roma, quando Marta e Fialho regressaram antes, ele teimou para ela ficar ao menos um dia no Rio de Janeiro. A pretexto de ver Corisco, o cavalo premiado, Marta Benício viveu duas noites de agonia. / Na segunda noite, Lourenço Fialho abriu um Barca Velha safra 1953. O sol crepuscular desaparecia no horizonte. Sentados na varanda do apartamento dele, localizado num luxuoso prédio da orla de Ipanema, foi importunada com toques no corpo, escreveu Marta Benício em seu caderno-diário. Via-se o desejo, a lascívia." (p. 98) - Trecho da Parte II - Pecados íntimos
No estilo elegante do autor, um entre tantos aforismos me chamou a atenção, uma reflexão que somente a experiência que adquirimos com a maturidade pode nos inspirar: "A velhice é um labirinto de espelhos, um tipo especial de dualidade. Um ser duplo na mesma pessoa. Elo entre passado e presente. Somos quinze ou trinta, depressa escalamos sessenta. [...]" Na parte final do romance, "Aquilo que sonhamos", os efeitos da passagem do tempo e o sofrimento com a morte do marido ameaçam a saúde e a própria vida de Marta Benício. "Belas viúvas", embora possa ser lido de forma independente, é o segundo volume da trilogia iniciada com "Carnaval amarelo".
"Era a primeira vez que Jorge Aureliano cuidava da própria mãe, justo ele que nunca se ocupara de ninguém enfermo, nem de si mesmo, porque sempre teve uma pessoa para lhe dar os remédios. A rotina do ministério o consome, quase não sobra tempo para Letícia, mulher vocacionada ao prazer sexual, que cobra com avidez. / Entraram no apartamento tirando os sapatos como fazem os japoneses. Letícia escovou os dentes e foi direto dormir enquanto Jorge Aureliano ficou lendo e relendo diversas anotações do ministro Fialho. Tarefa ingrata: retirar de um relatório todas as frases de efeito retórico. E reescrever duas outras com as expressões 'profetas da desgraça' e 'governo civil-militar'. Escreveu dez frases, não se convenceu. Riscou uma a uma; desistiu. Fez um sanduíche de peito de peru, depois pegou um álbum de fotos da mãe. Uma das fotos, tirada na frente do hotel George V em Paris, mostrava Marta Benício vestida de luvas e cachecol; noutra, as bordas eram serrilhadas, remetiam à sua infância em Santarém." (p. 131) - Trecho da Parte III - Aquilo que sonhamos
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