Aline Bei - Uma delicada coleção de ausências
O terceiro romance de Aline Bei, assim como O peso do pássaro morto e Pequena coreografia do adeus, incorpora elementos de prosa e poesia na sua construção, explorando a distribuição gráfica das palavras na página impressa para criar diferentes ritmos narrativos. A história é protagonizada por quatro gerações de mulheres: Laura, uma menina em transição para a adolescência, criada por sua avó Margarida; Glória, mãe de Laura e filha de Margarida, que abandonou a família inexplicavelmente após o parto, tornando-se uma ausência marcante na trama; e Filipa, bisavó de Laura e mãe de Margarida, cuja chegada altera a rotina doméstica na pequena casa de portão laranja da fictícia cidade chamada Belva, criando tensões entre os personagens devido à sua forte personalidade.
No decorrer do romance ficamos conhecendo a trajetória de ausências de cada uma dessas mulheres geração após geração. Filipa, a matriarca, buscou substituir pela religião o que faltava em um casamento infeliz que provocou a fuga da filha, Margarida, para trabalhar no circo, retornando já grávida de Glória que também abandona a família após o nascimento da filha, Laura, de um pai desconhecido. Laura com sua inocência infantil e as primeiras descobertas afetivas, juntamente com as amigas da escola, representa uma esperança de união entre essas mulheres no presente. Contudo, ela também está ameaçada por um destino violento. Somente Aline Bei seria capaz de contar uma história tão cruel com tamanha delicadeza e emoção.
"quando o circo chegou à cidade, aquele pedaço de terra batida onde levantaram a lona finalmente ganhou seu segredo. noite após noite se manteve iluminado, e parecia tão natural naquela paisagem que é como se tivesse crescido depois da chuva, e circo fosse árvore ou coisa que vem da terra. / em volta das luzes, pessoas se apinhavam na bilheteria, curiosas em especial pelo mágico Oberon e sua bela assistente, assim disseram os jornais, mas também pela família de trapezistas e pelo palhaço cigano. para que esse fascínio não se transformasse em desconfiança, para que se mantivesse no tom exato do divertimento excêntrico, para que o público não reparasse na velhice da lona ou nas olheiras da filha do trapezista, o circo vende pipoca — um rapaz magro, de bandeja pendurada no pescoço, atravessa o picadeiro com dezenas de saquinhos — enquanto o público se acomoda, a maioria crianças de mãozinhas dadas uma ao pai, outra à mãe." (p. 7)
Margarida cuida da neta com muito carinho, como se fosse sua mãe, enquanto sente a falta da própria filha e sustenta a casa com muita dificuldade lendo mãos em uma feira de antiguidades, mas com a chegada de Filipa, bisavó da menina, o aumento das atividades domésticas fará com que ela precise cada vez mais da ajuda de Camilo, um amigo da feira. O contraste entre as mentes e corpos das mulheres é um elemento marcante na prosa de Aline Bei, como no trecho a seguir sobre Filipa: "talvez envelhecer seja lidar imensamente com o próprio corpo, com esse estado de presença brutal, à beira do insuportável, um corpo que, de tanto já ter sido visto, agora precisa ser desvisto se os olhos dos outros não quiserem morrer por antecipação."
"[...] e pela primeira vez, depois de tantos anos, Filipa olha para ela. Margarida sente uma pontada de Deus no estômago e, ao revés de um balão, sua cabeça desce num pedido de desculpas. afinal há de se encontrar esperança no rosto de uma filha, é por isso que se tem filhos, para encontrar o que acaba em si no mais próximo de ser um eu. é um consolo, talvez o único, que ao menos um filho ainda tenha alguma coisa que se possa admirar. mas Margarida não tinha nada, apenas cansaço e vazio. ah, se ela soubesse que os olhos da mãe a encontrariam ali! teria vestido, antes de entrar no quarto, alguma expressão gentil, enquanto Filipa vasculha o rosto envelhecido da filha erguendo entre elas uma terceira presença, invisível mas ensurdecedora, feita de tudo o que a vida poderia ter sido e não foi." (pp 128-9)
Nesta delicada coleção de ausências, permeada por demonstrações de afeto que confrontam a dor do abandono, Aline Bei consolida seu estilo narrativo: delicado na forma, potente no conteúdo, revelando mais uma vez a intimidade e a resistência do universo feminino com personagens marcadas por silêncios e memórias. Um romance recomendado e que confirma a autora como uma das vozes mais criativas e sensíveis da literatura contemporânea.
"quando a professora pediu uma reportagem sobre algo que os alunos conheciam, Lívia obedeceu, mas não era para o seu texto ser lido em voz alta, ela escreveu apenas para ganhar nota, e de repente a professora estava começando a ler, e todos na classe escutando. Jordana até esqueceu de esconder o chiclete, masca devagar, prestando atenção. talvez não esteja entendendo tudo, mas desconfia, e repara nas bochechas cada vez mais vermelhas de Laura. / o texto não dá nomes, fala sobre sentir pena. conta sobre alguém muito frágil, que se perde facilmente. o texto. diz sobre emprestar a mãe, quem sabe até mesmo o pai. diz. que os velhos morrem cedo e que avós eram pessoas muito velhas. o texto. diz que bisavós eram tão velhas que podiam ser consideradas mortas. e que dormir com elas era como dormir com o seu próprio futuro. diz. de mães que abandonam filhos, moram em fotos, não voltam nunca mais. o texto. diz do tamanho da pena que sente, diz ai, coitada, ou então coitadinha. e que amizade no fundo é ser mais forte que alguém." (pp. 232-3)
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