Aline Bei - Pequena coreografia do adeus
Aline Bei enfrenta o desafio de lançar o segundo livro depois do estrondoso sucesso de crítica e público de O peso do pássaro morto (2017), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, ou seja, vencer a síndrome do segundo romance que, nesses casos, se caracteriza pela própria expectativa em manter ou, de preferência, superar o nível de qualidade do primeiro lançamento. Em Pequena coreografia do adeus, a autora consolida a sua criativa técnica de "romance-poema" ao incorporar elementos de prosa e poesia, assim como o efeito da distribuição das palavras na página impressa e diferentes tamanhos de fonte, conseguindo uma ferramenta inusitada de controle do ritmo narrativo.
A jovem protagonista Júlia Terra precisou aprender a conviver desde muito cedo com a inadequação e a solidão decorrentes da difícil relação com os pais e isso já fica bem claro a partir da epígrafe em forma de dedicatória: "para todos aqueles que procuram uma / Casa dentro de casa / em especial aos que procuram / desesperadamente." Entre as surras que sofre da mãe, uma mulher frustrada pelo fracasso no casamento, e o pai que procura assumir uma nova identidade de homem separado, mantendo o contato com a filha em um nível burocrático de visitas semanais, restam poucas opções afetivas para Júlia. Uma dessas opções, que lhe permite "esvaziar a mente" e "sumir por um tempo", é escrever um diário.
"Querido diário, Eu me chamo Júlia Manjuba Terra e não acredito no amor. Se eu pudesse escolher, gostaria de me transformar em uma música, porque além de bonita ela desaparece quando alguém desliga o rádio. Eu também poderia ser qualquer pessoa aqui da rua ou da minha escola. Mas acho que prefiro mesmo ser a música, esse negócio de sumir por um tempo deve ser o máximo. / Aqui em casa a gente não se abraça, então quando a professora Cláudia me abraçou, porque eu ajudei a carregar os livros até a sala, eu senti um negócio no pescoço, uma vontade de dormir." (pp. 26-27)
Outro escasso divertimento da pequena protagonista é assistir ao funcionamento da máquina de lavar e o movimento das roupas, como descrito neste trecho que empresta o título ao livro: "[...] como são vigorosos os cabelos de quem mergulha / o mesmo acontece com as roupas, elas ganham fibra, elegância / se enlaçam e / se soltam em uma / pequena coreografia / do adeus." Com o passar dos anos e o amadurecimento, Júlia tende a entender melhor as fraquezas de dona Vera, a mãe que carrega dentro de si "uma espécie de museu da dor", contudo, à noite, quando dormem juntas na mesma cama, se revela uma outra mãe possível.
"[...] se eu quisesse criar algum laço / com ela, delicadamente // eu teria que investir na alta madrugada / um lugar onde ela se abria um pouco pétala / ficava vulnerável ao peso dos lençóis. / foi quando eu compreendi / que a minha mãe tinha uma outra mãe possível dentro de si / difícil de cavar, e como!, ainda assim / e por isso mesmo / uma joia / de mãe, essa mulher doce e / fantasmagórica / que comandava o barco materno quando tudo escurecia / e que ainda esperava pela chuva / em suas pétalas / o que, no mesmo instante, me fazia esperar também." (p. 76)
Já com relação a Sergio, seu pai, existia inicialmente uma simpatia maior, uma vez que ele não costumava bater na filha, contudo, Júlia percebe que a sua atenção está cada vez mais concentrada em outros interesses e "namoradas idiotas", quando parece ficar com ela apenas por obrigação: "O que me deixa triste é que meu pai me abandona muito. A minha mãe ele abandonou de uma vez, mas comigo é pior, ele fica me abandonando devagar."
"meu pai me buzinava domingo de manhã / e eu colocava / a mochila nas costas, mais alegre do que gostaria de admitir. / agora tínhamos esses momentos juntos / e ao mesmo tempo que isso me dava um pouco de medo / da falta / de assunto, medo da Máscara / ainda assim era / prazeroso / poder estar ao lado dele sem a presença da minha mãe. / por onde começar a aproveitar o pai que eu tinha? / eu não sabia muito sobre ele. / por isso, quando eu colocava a mochila nas costas / para além da maçã / e do diário, era como se eu carregasse / instrumentos / para lidar com a nossa relação." (p. 77)
Apesar do difícil convívio com uma família disfuncional, esta é uma história de esperança e, principalmente, de redenção pela arte, quando Júlia assume um novo caminho, perseguindo o sonho de se tornar escritora. Se você gostou do romance de estreia, O Peso do pássaro morto, certamente vai adorar este lançamento e, caso ainda não conheça o trabalho da autora, não perca mais tempo e leia Pequena coreografia do adeus porque – repetindo a frase com a qual terminei a resenha do livro anterior – algo me diz que ainda vamos ouvir falar muito de Aline Bei.
Sobre a autora: Aline Bei nasceu em São Paulo, em 1987. É formada em letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em artes cênicas pelo Teatro-escola Célia Helena. Seu romance de estreia, O peso do pássaro morto (2017), foi vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Toca, além de finalista do Prêmio Rio de Literatura. Pequena coreografia do adeus é seu segundo livro.
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