Aline Bei - Pequena coreografia do adeus

Literatura brasileira contemporânea
Aline Bei - Pequena coreografia do adeus - Editora Companhia das Letras - 264 Páginas - Capa: Julia Masagão - Imagem de capa: Louise Bourgeois, Etats modifiés, 1992 - Lançamento: 2021.

Aline Bei enfrenta o desafio de lançar o segundo livro depois do estrondoso sucesso de crítica e público de O peso do pássaro morto (2017), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, ou seja, vencer a síndrome do segundo romance que, nesses casos, se caracteriza pela própria expectativa em manter ou, de preferência, superar o nível de qualidade do primeiro lançamento. Em Pequena coreografia do adeus, a autora consolida a sua criativa técnica de "romance-poema" ao incorporar elementos de prosa e poesia, assim como o efeito da distribuição das palavras na página impressa e diferentes tamanhos de fonte, conseguindo uma ferramenta inusitada de controle do ritmo narrativo.

A jovem protagonista Júlia Terra precisou aprender a conviver desde muito cedo com a inadequação e a solidão decorrentes da difícil relação com os pais e isso já fica bem claro a partir da epígrafe em forma de dedicatória: "para todos aqueles que procuram uma / Casa dentro de casa / em especial aos que procuram / desesperadamente." Entre as surras que sofre da mãe, uma mulher frustrada pelo fracasso no casamento, e o pai que procura assumir uma nova identidade de homem separado, mantendo o contato com a filha em um nível burocrático de visitas semanais, restam poucas opções afetivas para Júlia. Uma dessas opções, que lhe permite "esvaziar a mente" e "sumir por um tempo", é escrever um diário.

"Querido diário, Eu me chamo Júlia Manjuba Terra e não acredito no amor. Se eu pudesse escolher, gostaria de me transformar em uma música, porque além de bonita ela desaparece quando alguém desliga o rádio. Eu também poderia ser qualquer pessoa aqui da rua ou da minha escola. Mas acho que prefiro mesmo ser a música, esse negócio de sumir por um tempo deve ser o máximo. / Aqui em casa a gente não se abraça, então quando a professora Cláudia me abraçou, porque eu ajudei a carregar os livros até a sala, eu senti um negócio no pescoço, uma vontade de dormir." (pp. 26-27)

Outro escasso divertimento da pequena protagonista é assistir ao funcionamento da máquina de lavar e o movimento das roupas, como descrito neste trecho que empresta o título ao livro: "[...] como são vigorosos os cabelos de quem mergulha / o mesmo acontece  com as roupas, elas ganham fibra, elegância / se enlaçam e / se soltam em uma / pequena coreografia / do adeus." Com o passar dos anos e o amadurecimento, Júlia tende a entender melhor as fraquezas de dona Vera, a mãe que carrega dentro de si "uma espécie de museu da dor", contudo, à noite, quando dormem juntas na mesma cama, se revela uma outra mãe possível.

"[...] se eu quisesse criar algum laço / com ela, delicadamente // eu teria que investir na alta madrugada / um lugar onde ela se abria um pouco pétala / ficava vulnerável ao peso dos lençóis. / foi quando eu compreendi / que a minha mãe tinha uma outra mãe possível dentro de si / difícil de cavar, e como!, ainda assim / e por isso mesmo / uma joia / de mãe, essa mulher doce e / fantasmagórica / que comandava o barco materno quando tudo escurecia / e que ainda esperava pela chuva / em suas pétalas / o que, no mesmo instante, me fazia esperar também." (p. 76)

Já com relação a Sergio, seu pai, existia inicialmente uma simpatia maior, uma vez que ele não costumava bater na filha, contudo, Júlia percebe que a sua atenção está cada vez mais concentrada em outros interesses e "namoradas idiotas", quando parece ficar com ela apenas por obrigação: "O que me deixa triste é que meu pai me abandona muito. A minha mãe ele abandonou de uma vez, mas comigo é pior, ele fica me abandonando devagar."

"meu pai me buzinava domingo de manhã / e eu colocava / a mochila nas costas, mais alegre do que gostaria de admitir. / agora tínhamos esses momentos juntos / e ao mesmo tempo que isso me dava um pouco de medo / da falta / de assunto, medo da Máscara / ainda assim era / prazeroso / poder estar ao lado dele sem a presença da minha mãe. / por onde começar a aproveitar o pai que eu tinha? / eu não sabia muito sobre ele. / por isso, quando eu colocava a mochila nas costas / para além da maçã / e do diário, era como se eu carregasse / instrumentos / para lidar com a nossa relação." (p. 77)

Apesar do difícil convívio com uma família disfuncional, esta é uma história de esperança e, principalmente, de redenção pela arte, quando Júlia assume um novo caminho, perseguindo o sonho de se tornar escritora. Se você gostou do romance de estreia, O Peso do pássaro morto, certamente vai adorar este lançamento e, caso ainda não conheça o trabalho da autora, não perca mais tempo e leia Pequena coreografia do adeus porque – repetindo a frase com a qual terminei a resenha do livro anterior – algo me diz que ainda vamos ouvir falar muito de Aline Bei.

Sobre a autora: Aline Bei nasceu em São Paulo, em 1987. É formada em letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em artes cênicas pelo Teatro-escola Célia Helena. Seu romance de estreia, O peso do pássaro morto (2017), foi vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Toca, além de finalista do Prêmio Rio de Literatura. Pequena coreografia do adeus é seu segundo livro.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Pequena coreografia do adeus de Aline Bei

Comentários

Gostei da resenha. Ainda não li nada da autora. Vou corrigir isso.
Alexandre Kovacs disse…
Oi Kelly, obrigado pela visita e comentário! Vale a pena conhecer o trabalho da autora.
Adriane Garcia disse…
Preciso ler este, querido Alexandre Kovacs. O primeiro é excelente. Obrigada por falar sobre tantos livros.
Alexandre Kovacs disse…
Oi Adriane, eu é que agradeço por seus poemas sempre bem-vindos por aqui!

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