Caléu Moraes - A morte do alquimista
Caléu Moraes conseguiu um resultado ainda mais polêmico, farsesco e politicamente incorreto do que em seus livros anteriores — As aventuras de Lorde Nélson e Schopenhauer e o Kung Fu — se é que tal coisa é possível. Acho isso ótimo, definitivamente não é bom quando a literatura se leva demasiado a sério. Neste novo romance, o protagonista-narrador não nomeado — que suspeito ser um alter ego do próprio Caléu Moraes — é contratado para escrever um livro sobre uma produção cinematográfica com base no best-seller de Paulo Coelho, O alquimista. Uma trajetória alucinante tem início em Los Angeles para cruzar os Estados Unidos até a residência de ninguém menos do que Philip Roth, contratado como roteirista, continuando até a Itália, Roma, com a finalidade de reunir toda a equipe com Paulo Coelho para a leitura do roteiro e, finalmente, Marrocos, em uma espiral vertiginosa de situações absurdas.
Ao longo da acelerada narrativa, acompanhamos as loucuras e incorreções de todo tipo dos personagens, a maioria inspirados em personalidades reais, além de Philip Roth (1922-2018) e Paulo Coelho, nomes tão distintos e aleatórios quanto: Dario Fo (1916-2016) — escritor, dramaturgo e comediante italiano, Prêmio Nobel de Literatura em 1997; James Franco, ator norte-americano escolhido para interpretar Santiago, protagonista de O alquimista; Michael Bay, diretor de filmes de ação como Transformers; David Salle, pintor e cenógrafo norte-americano pouco conhecido do grande público e o elemento agregador — ou desagregador, como preferirmos — Harry Donaldi, o grande deus Harry como é chamado pelo narrador, comprador dos direitos do livro do celebrado autor brasileiro para adaptação, manipulando todo o time à base de sexo e drogas em uma sátira irreverente aos poderosos produtores de Hollywood.
"Certo. Em O alquimista, um rapaz pergunta a um velho qual é a maior mentira do mundo. O velho, então, responde: 'em algum momento de nossas vidas, percebemos que nada é verdadeiro'. / Eu estava nesta parte do livro, quando o avião chegou a Los Angeles. Sei que tinha que ler. Do contrário não era possível escrever nada sobre a produção do filme. Eu ia parecer um idiota que não sabe das coisas que está falando. E isto é o pior que alguém pode parecer. De vez em quando, finjo ter lido livros que não li. Todo mundo faz isso. Não é difícil. Desta vez, no entanto, para escrever minha reportagem, queria fazer as coisas direito. Meus livros, sempre encalhados, iriam deslanchar. Marcela teria orgulho de mim. Não sei se dizia para as amigas que o marido era um escritor ou, talvez, que fora professor na Índia e, então, trabalhava num livro sobre um filme. Escolhi perguntar, mas desisti e batemos na porta: Harry estava lá. No entanto, quem abriu foi um velho encarquilhado, um tipo de mordomo, um homem bastante servil, que não falava o inglês costumeiro, mas imitava o estilo britânico." (pp. 51-2)
Além de David Salle, alvo de uma aversão inexplicável por parte do narrador-protagonista, outro desafeto recorrente dele é o motorista de Harry, um negro aidético, como é nomeado em mais uma notável incorreção política do autor, porém com uma invejável cultura geral que lhe permite citar Friedrich Schlegel no idioma original na frente de Marcela, a sensual mulher do narrador, objeto de desejo de praticamente todos os outros personagens. Como nos livros anteriores de Caléu Moraes, diversas referências literárias e filosóficas da cultura ocidental e oriental são inseridas na trama, sem falar nas passagens da mitologia grega e outras citações sobre psicologia, cultura e arte em geral, fazendo da leitura sempre uma surpresa renovada.
"Para que sejamos exatos, eu não estava preparado para um road movie. Não queria cruzar os Estados Unidos. Bom, queria, mas não guiado por aquele infeliz. Tampouco com uma missão tão doida quanto a de acossar o Philip Roth. Também havia a questão de carregar Marcela que, Deus do céu, eu temia que enxergasse minha covardia. Todos os homens são covardes nalgum momento. Corria o risco de que o meu fosse o cara-a-cara com o Philip Roth. / Estávamos num SUV realmente gigante e muito confortável. Tínhamos bebidas, comida, tudo... Muito espaço. Para fodermos, por exemplo. Harry instalara um mecanismo que erguia uma divisória e nos isolava do motorista... Cara... Não era bem um SUV. Parecia um Transformer. Eu disse ao John que quando ele estivesse cansado eu assumiria o volante. Não tínhamos tempo a perder. Com alguma sorte, em dois dias e meio estaríamos em Warren." (pp. 102-3)
Um romance inteligente, bem-humorado e, de certa forma, corajoso também, cuja força está não apenas no sarcasmo corrosivo e nos delírios dos personagens desajustados, mas principalmente na habilidade com que Caléu Moraes constrói um estilo original e transgressor muito próprio que vai conquistando o seu lugar no cenário da literatura contemporânea. Que este livro ajude a expandir seu alcance, furando de vez a bolha das grandes editoras e conquistando o espaço merecido entre os leitores que buscam mais do que narrativas domesticadas — leitores que estão dispostos a encarar a literatura como uma área de risco, experimentação e liberdade.
"Entramos pelos fundos... Logo, o palco: umas vinte cadeiras nos esperavam: em uma delas, quase que no centro do palco, estava ele, o Mago, que se livrara dos compromissos, em Genebra, para vir ao nosso encontro. Não preciso descrevê-lo. Todos o conhecem. Posso arriscar, porém, o registro das minhas primeiras impressões: era educado, cortês. Logo que chegamos, cumprimentou todos nós, um a um... Abraços e beijos, como fazemos os brasileiros. Vestia um paletó cinza e justo, que lhe caía mal por causa da barriga pronunciada. Usava um estranho cinto fluorescente para iluminar sua mente rasteira. Perdão. Façamos justiça ao homem: não posso levar a sério qualquer pessoa religiosa. Apenas Marcela; todo o resto me parecem pessoas burras, limitadas. Conversar com pessoas religiosas é o mesmo que explorar mundos conhecidos: você sabe onde terminam... Elas não têm graça. O Mago começou a me irritar pelo fanatismo brutalmente invasivo: pediu que, antes que começássemos a discutir o roteiro, déssemos as mãos... Renitente, recusei-me a participar. Eles rezaram alguma coisa. Depois, me arrependi da teimosia exagerada. Era tarde demais, contudo. [...]" (pp. 188-9)
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