Leonardo Almeida Filho - Mandacarus

Literatura brasileira contemporânea
Leonardo Almeida Filho - Mandacarus - Editora Patuá - 308 Páginas - Projeto gráfico: Roseli Vaz
Capa: "O Mandacaru", acrílico sobre tela, LAF - Lançamento: 2025.

O mais recente lançamento de Leonardo Almeida Filho  é uma obra singular de formação familiar — se é que podemos nomeá-lo assim — que acompanha gerações de nordestinos em um enredo envolvente, transformando em ficção as histórias de sua própria família e círculo de amigos. A narrativa tem início no período da grande seca de 1877 no Ceará, também conhecida como a "seca dos dois setes" que assolou a região Nordeste do Brasil entre 1877 e 1879, avançando até os dias atuais. Na primeira parte do livro é apresentada a trajetória dos Farias que fogem de Fortaleza devido à seca para se estabelecer na cidade de Sousa, na Paraíba.  Em seguida, conhecemos os Pedreiras, portugueses que chegam ao Brasil em 1909, se estabelecem inicialmente em Pernambuco e depois migram para a Paraíba, onde as duas famílias se unem na década de 1940, em Campina Grande.

Ao narrar a epopeia dessas linhagens ao longo de um século — numa sucessão de filhos, netos e bisnetos — e incorporar as mudanças sociais e políticas do Brasil nesse intervalo, a obra transcende os limites do romance regionalista, embora também o seja, para alcançar um status universal. O romance apresenta uma multiplicidade de personagens cujas dores, alegrias, conquistas e fracassos são tão genuínos quanto difíceis de resumir em uma resenha. São figuras resilientes, autênticos “mandacarus”, em referência à força e à beleza dessa planta símbolo do sertão nordestino. O título do livro, aliás, reflete com sensibilidade esse contraste: entre os perigosos espinhos que protegem e a flor que desponta como sinal de esperança, anunciando chuva e fartura em meio à aridez.

"Diante da misteriosa atmosfera do sertão no fim da tarde, quando tudo parecia adormecer sob a noite estrelada, o coração disparava nos encontros com grupos de flagelados. Apesar de toda a tensão, a viagem transcorreu sem percalços. Consideradas as circunstâncias e a grande probabilidade de que tudo desse errado, esse cenário era mesmo um milagre. Nas cercanias de Cajazeiras, de onde já se avistava o amontoado de casinhas brancas, depararam-se com um grupo de beatos liderado por um homem magro, de barba enferrujada, longa, e olhar molhado e embaçado, denunciando uma cegueira que dele se apossava lentamente. Vestia um roupão de linho rústico, amarronzado, com uma corda branca amarrada na cintura. Carregava uma cruz de madeira e, numa das mãos, trazia um terço. O velho estendeu levemente o braço em direção a eles e os abençoou: que o Bom Jesus lhes proteja, meus filhos. [...] Sigam na paz de Nosso Senhor Jesus Cristo, disse o beato a Severino. Louvado seja, respondeu. Não contendo a curiosidade, Lúcia perguntou-lhe de onde eram, para onde iam. Seguiam ao encontro do Bom Jesus, o velho respondeu. Era essa a alcunha pela qual muitos sertanejos conheciam um tal Antonio dos Mares, também chamado o Conselheiro. [...]" (pp. 36-7)

O livro surpreende por não se limitar aos padrões da literatura contemporânea brasileira, frequentemente centrada em ambientes urbanos — preferencialmente da Região Sudeste — e marcada por narrativas de curta extensão. Ao contrário, esta obra ousa com um mosaico histórico e emocional que dialoga com importantes episódios do passado do país. Apesar de sua extensão desafiadora, a leitura se mantém envolvente, graças à estrutura fragmentada em episódios independentes, como se fossem contos, ambientados em diferentes épocas e perspectivas familiares. Essa dinâmica narrativa renova constantemente o prazer da leitura, mantendo vivo o interesse do leitor do início ao final.

"Esperança é coisa que, em certos casos, como o de Lídia, se perde rapidamente, contrariando o ditado que diz ser a última que morre. Ela logo percebeu o canalha com quem se casara. Não faltaram avisos, sinais. Todas as suspeitas foram confirmadas: Mundico não valia um tostão sequer. O marido, agora tinha certeza, era um traste, um verme, um nada. Apesar de todas as preces que fez para que São Judas Tadeu desse um jeito naquele homem, de todas as velas que acendeu para Nossa Senhora das Neves, de todos os apelos, Lídia se viu diante de uma realidade indesejada: seu companheiro rendeu-se definitivamente à bebida, às farras, ao jogo e, com certeza, às mulheres. Se é que, em algum momento dos poucos anos de matrimônio, ele abandonara esses hábitos da juventude. No início, acreditava ser possível mudar o comportamento de Mundico. Chegou a fazer chantagens, ameaças, pressioná-lo para que tomasse vergonha na cara, seu vagabundo, pense nos seus filhos, safado, dizia nas sucessivas noites em que ele chegava bêbado e cheirando a perfume barato. [...]" (p. 100)

Complementam o cuidadoso lançamento da Editora Patuá uma introdução de Luiz Eduardo Carvalho, "Olaria de uma genealogia", e posfácio de André Matias Nepomuceno, "Fios de mandacaru". Destaque para o emocionante capítulo final: "Nota do Autor" que ajuda a contextualizar e entender a obra com um olhar íntimo e revelador: "Afinal, o que me fez escrever essa grande jornada familiar? Em primeiro lugar, a vontade de deixar registrada a história de homens e mulheres que constituem a minha existência. Maneira de resgatá-los do olvido. Acrescente-se a isso, a necessidade vital de lhes dar voz e de fazê-los reviver em linguagem, perpetuando-os na leitura deste livro. Esse o motivo fundamental de uma jornada épica. São meus heróis, de carne e osso, hoje fantasmas." 

"Os negócios moralmente condenáveis da família Pacheco Pedreira não duraram muito tempo. Como era de se esperar, Tonha negou-se a participar, fez cara feia, ameaças. Trancava-se no quarto, quando as irmãs levavam um cliente para casa. Sua recusa acabou acompanhada por queixas e promessas de fuga. Vou-me embora daqui, se não pararem com essa safadeza, mãe. Além disso, os protestos de Mário José e a ameaça de contar tudo ao pai fizeram com que as mulheres se preocupassem com as consequências de tudo aquilo. Desconfiada de que a vizinhança estava percebendo o entra e sai de homens em sua casa, dona Margarida, mesmo contrariada, pois o negócio estava rendendo uma boa quantia, deu um basta à situação, não por sentir-se envergonhada, ou qualquer coisa semelhante, mas porque não admitiria estar na boca dessa gentinha escura aqui do bairro. Belinha, das três, foi quem mais sentiu o fim do negócio. De uma hora para outra, perdeu presentes, dinheiro, tardes de sexo. [...]" (p. 264)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Leonardo Almeida Filho (Campina Grande/PB, 1960), escritor. Mestre em literatura brasileira pela UnB (2002). Publicou Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito (EdUnB, 2008), O livro de Loraine (romance, 1998), Nebulosa fauna & outras histórias perversas (contos, 2014), Babelical (poemas, Patuá, 2018), Nessa boca que te beija (romance, Patuá, 2019), Grande Mar Oceano (romance, Editora Gato Bravo/Portugal, 2019, Jaguatirica, Rio de Janeiro, 2019), Tutano (poemas, Patuá, 2020). Finalista do Prêmio Candango de Literatura 2022 com o romance Os possessos (Patuá, 2022); Berro (Contos, Editora Patuá, 2023).

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Mandacarus de Leonardo Almeida Filho

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