Hans Magnus Enzensberger
Eu falo dos que não falam - Hans Magnus Enzensberger - Editora Brasiliense, 1985 - Antologia Bilíngue - 139 páginas - Tradução Kurt Scharf e Armindo Trevisan (fora de catálogo)
O escritor, poeta e intelectual Hans Magnus Enzensberger é citado, normalmente, como um dos maiores poetas vivos da língua alemã. Nascido em 1929 na Baviera, viveu a sua infância durante o governo nazista e a juventude no processo de reconstrução econômica da Alemanha. Seu posicionamento político, no início da carreira, era francamente de esquerda radical, tendo residido em Cuba nos anos sessenta. Foi considerado um sucessor do filósofo Theodor Adorno e, no campo da poesia, de Bertold Brecht. Seus ensaios e obras literárias ficaram famosos pela análise sobre a política, a crítica social e a tradição literária. Foi membro do Grupo 47, importante marco da renovação literária alemã, e professor convidado de poesia na Universidade de Frankfurt.
Em evento organizado no mês passado pelo Instituto Moreira Salles, Companhia das Letras e Goethe-Institut, Enzensberger esteve em São Paulo para o lançamento do livro Hammerstein ou a Obstinação (Companhia das Letras). Entre suas obras traduzidas para o português estão A outra Europa (Companhia das Letras, 2006), O diabo dos números (Companhia das Letras, 2000) e Elementos para uma teoria dos meios de comunicação (Conrad, 2003).
Selecionei para esta postagem a poesia O divórcio (Die Scheidung), incluída na Antologia do livro A fúria do sumiço (Die Furie des Verschwindens) publicado em 1980. Trata-se de um trabalho doloroso, eu diria agonizante mesmo e que sintetiza com perfeição até que ponto pode chegar a relação entre seres humanos.
O divórcio (Die Scheidung)
Enzensberger
No início era só um tremor imperceptível da pele –
“Como quiseres” –, ali onde a carne é mais escura.
“O que tens?” – Nada. Sonhos leitosos
de abraços, mas na manhã seguinte
o outro parece diferente, estranhamente ossudo.
Mal-entendidos que cortam como facas. “Aquela vez em Roma” –
Isso eu não disse nunca. – Silêncio. Loucas palpitações
do coração, um tipo de ódio, estranho. – “Não se trata disso.”
Repetições. Com clareza radiante a certeza:
A partir de agora tudo é errado. Inodora e nítida
como uma foto de passaporte, essa pessoa desconhecida,
o copo de chá na mesa, os olhos fixos.
Não tem sentido, não tem sentido:
Ladainha na cabeça, um acesso de náusea.
Fim das rixas. Devagar a sala
se enche de culpa até o teto
A voz queixosa é alheia, apenas os sapatos
que caem ao chão com um estrondo, os sapatos não.
Na próxima vez, num restaurante vazio,
câmera lenta, migalhas de pão, fala-se de dinheiro.
Risos. A sobremesa tem sabor metálico.
Dois intocáveis. Lógica estridente.
“Não é tão grave assim.” Porém, à noite,
o rancor, a luta silenciosa, anônimos
como dois advogados ossudos, dois caranguejos grandes
na água. Enfim, o cansaço. Devagar
a crosta descasca. Uma nova tabacaria,
um novo endereço. Párias, terrivelmente aliviados.
Sombras que empalidecem. Este é o processo.
Este é o molho de chaves. Esta é a cicatriz.
Comentários
Mas por esse poema vê-se que tens razão no seu post. A construção é muito rica e dolorida no caso.
Vale a pena conhecer mais do autor, e claro você sempre com boas dicas.
ps.: doida para terminar o mestrado e retomar minhas leituras.
Beijos!
“Este é o processo.
Este é o molho de chaves. Esta é a cicatriz.”
Este homem é fera!!!
Valeu pela ótima dica!
Com certeza, irei mais além!
Bjs.
Excelente dica, como sempre.
Um grande abraço.
Gosto de poemas :)
Tenho um premio para o Mundo K (Master Blog) passa lá no viajar pela leitura...
Abraços
"Razões adicionais para os poetas mentirem"
Porque o momento
no qual a palavra feliz
é pronunciada,
jamais é o momento feliz.
Porque quem morre de sede
não pronuncia sua sede
Porque na boca da classe operária
não existe a palavra classe operária.
Porque quem desespera
não tem vontade de dizer:
"Sou um desesperado".
Porque orgasmo e orgasmo
não são conciliáveis.
Porque o moribundo em vez de alegar:
"Estou morrendo"
só deixa perceber um ruído surdo
que não compreendemos.
Porque são os vivos
que chateiam os mortos
com suas notícias catastróficas.
Porque as palavras chegam tarde demais,
ou cedo demais
Porque, portanto, é sempre um outro,
sempre um outro
quem fala por aí,
e porque aquele
do qual se fala
se cala.
E tinha razão! É um espaço interessante que eu passarei a frequentar.
Um abraço.
António
Também faço parte do clube dos que não conheciam Enzensberger. Devo dizer que gostei mais do segundo poema: me lembrou de Platão e sua teoria de que a verdade está no plano das ideias:
"Porque as palavras chegam tarde demais,
ou cedo demais"
Respondendo ao teu comentário do meu comentário ( confuso, mas não tanto).
Enzensberger tira o sumo dos sentimentos e o serve em palavras.
Vou lê-lo mais para saciar a minha curiosidade e confirmar o que já pude perceber neste dois exemplos e no teu texto.
Obrigada pela gentileza!
Particularmente, prefiro " O Divórcio" e acho que optaste bem em escolhê-lo para o teu post, mas gosto é gosto e os dois são muito bons!
Bjs e bom final de samana pra ti.
Não há renovação sem dor, assim como a vida se renova na dor de um novo nascer.
Enfim, 'tudo passa'.
Amei a dica.
Você tem toda razão quando diz que "tudo passa" e como dizia a minha mãe: "não há mal que sempre dure, nem bem que não se acabe".
Duas questões: Vou passar um mês lá para os lados de Natal e queria aproveitar para me colocar ao corrente da moderna literatura brasileira que estivesse ao nível de um Raduan Nassar. Pode-me indicar alguns nomes?
Enviei o link do seu blog para um escritor português que já traduziu Hans Magnus e que por sinal vai à Suissa para participar nas comemoração dos oitenta anos de Hans Magnus. Pois este amigo perguntou-me quem era o editor do "Mundo de K". Posso saber?
Minha profissão é a engenharia e edito este blog como uma maneira de me manter ligado aos assuntos da cultura.
Infelizmente, no momento, não temos no Brasil um autor do nível de Raduan Nassar, talvez na próxima geração quem sabe... Posso recomendar entre os contemporâneos: Ronaldo Correia de Brito (ver penúltima postagem) e o já clássico Milton Hatoum.
Vou guardar o seu contacto e enviar esta informação para - o que eu considero um dos nos maiores escritores da língua portuguesa, o Almeida Faria.
Creio no futuro porque creio na cultura.
Mais uma vez muito obrigado.
Cid Simões