J.M. Coetzee - Elizabeth Costello
J.M. Coetzee - Elizabeth Costello - Editora Companhia das Letras - 254 páginas - Publicação 2004 - Tradução de José Rubens Siqueira.
A coisa mais extraordinária sobre o escritor sul-africano John Maxwell Coetzee, Nobel de literatura 2003, além da sua capacidade de me fazer quase sempre perder a estação de metrô, é a habilidade de sintetizar em vinte páginas o que outros escritores precisam de duzentas para explicar e nem sempre conseguem. Não é diferente com este romance que tem como personagem-título a romancista australiana Elizabeth Costello, alter ego de Coetzee, que teria ficado famosa pelo romance "A casa da rua Eccles com o personagem principal Marion Bloom, mulher de Leopold Bloom, protagonista de Ulisses (1922) de James Joyce.
Este foi o primeiro trabalho de Coetzee depois do premiado "Desonra" (ler resenha do Mundo de K aqui). Em Elizabeth Costello ele se utiliza de um recurso narrativo de metaficção para refletir sobre a literatura e o trabalho dos escritores, através de oito palestras da escritora de sessenta e seis anos de idade, defensora dos animais, em diferentes situações que ela vivencia ao viajar pelo mundo recebendo prêmios literários. Nunca fica claro para o leitor se está diante de uma obra autobiográfica, de ficção ou ensaio filosófico onde não faltam citações a romancistas consagrados como Swift, Daniel Defoe e Kafka e filósofos como Kant e Wittgenstein.
Difícil escolher e destacar alguns trechos, mas o capítulo sobre Eros e as relações eróticas entre homens e deuses é magistral: "Amor e morte. Os deuses, os imortais, foram os inventores da morte e da corrupção; porém, com exceção de dois ou três exemplos notáveis, não tiveram coragem de experimentar sua invenção em si mesmos. Por isso é que têm tanta curiosidade sobre nós, são tão infindavelmente inquisitivos. (...) Dos dois, deuses e mortais, somos nós que vivemos com maior urgência, que sentimos com maior intensidade. Por isso é que não podem nos tirar da cabeça, não podem passar sem nós, nos vigiam incessantemente e nos espionam. É por isso, afinal, que não baixam uma proibição ao sexo conosco, simplesmente regulam quando, de que jeito e com que frequência. Inventores da morte; inventores do turismo sexual também. Nos êxtases sexuais dos mortais, o frisson da morte, suas contorções, seus relaxamentos: falam disso sem parar quando bebem demais - com quem primeiro experimentaram isso, como foi. Eles gostariam de ter aquele arrepiozinho inimitável em seu repertório erótico, para temperar os acasalamentos entre eles. Mas isso tem um preço que não estão dispostos a pagar. Morte, aniquilação: e se não existir ressureição?, pensam, apreensivos."
Destaque também para a declaração da escritora no surpreendente último capítulo onde, longe do céu e do inferno, ela sofre para escrever uma das melhores definições já pensadas sobre literatura: "Sou escritora, uma mercadora de ficções. Tenho apenas crenças provisórias: crenças fixas me atrapalhariam. Mudo de crença como mudo de casa ou de roupas, de acordo com minhas necessidades. (...) Sou escritora, e o que escrevo é o que escuto. Sou secretária do invisível, uma das muitas secretárias ao longo das eras. Esta é a minha missão: secretária estenógrafa. Não me compete interrogar, julgar o que me é dado. Simplesmente escrevo as palavras e testo, testo a sua integridade, para ter certeza de que ouvi direito."
A coisa mais extraordinária sobre o escritor sul-africano John Maxwell Coetzee, Nobel de literatura 2003, além da sua capacidade de me fazer quase sempre perder a estação de metrô, é a habilidade de sintetizar em vinte páginas o que outros escritores precisam de duzentas para explicar e nem sempre conseguem. Não é diferente com este romance que tem como personagem-título a romancista australiana Elizabeth Costello, alter ego de Coetzee, que teria ficado famosa pelo romance "A casa da rua Eccles com o personagem principal Marion Bloom, mulher de Leopold Bloom, protagonista de Ulisses (1922) de James Joyce.
Este foi o primeiro trabalho de Coetzee depois do premiado "Desonra" (ler resenha do Mundo de K aqui). Em Elizabeth Costello ele se utiliza de um recurso narrativo de metaficção para refletir sobre a literatura e o trabalho dos escritores, através de oito palestras da escritora de sessenta e seis anos de idade, defensora dos animais, em diferentes situações que ela vivencia ao viajar pelo mundo recebendo prêmios literários. Nunca fica claro para o leitor se está diante de uma obra autobiográfica, de ficção ou ensaio filosófico onde não faltam citações a romancistas consagrados como Swift, Daniel Defoe e Kafka e filósofos como Kant e Wittgenstein.
Difícil escolher e destacar alguns trechos, mas o capítulo sobre Eros e as relações eróticas entre homens e deuses é magistral: "Amor e morte. Os deuses, os imortais, foram os inventores da morte e da corrupção; porém, com exceção de dois ou três exemplos notáveis, não tiveram coragem de experimentar sua invenção em si mesmos. Por isso é que têm tanta curiosidade sobre nós, são tão infindavelmente inquisitivos. (...) Dos dois, deuses e mortais, somos nós que vivemos com maior urgência, que sentimos com maior intensidade. Por isso é que não podem nos tirar da cabeça, não podem passar sem nós, nos vigiam incessantemente e nos espionam. É por isso, afinal, que não baixam uma proibição ao sexo conosco, simplesmente regulam quando, de que jeito e com que frequência. Inventores da morte; inventores do turismo sexual também. Nos êxtases sexuais dos mortais, o frisson da morte, suas contorções, seus relaxamentos: falam disso sem parar quando bebem demais - com quem primeiro experimentaram isso, como foi. Eles gostariam de ter aquele arrepiozinho inimitável em seu repertório erótico, para temperar os acasalamentos entre eles. Mas isso tem um preço que não estão dispostos a pagar. Morte, aniquilação: e se não existir ressureição?, pensam, apreensivos."
Destaque também para a declaração da escritora no surpreendente último capítulo onde, longe do céu e do inferno, ela sofre para escrever uma das melhores definições já pensadas sobre literatura: "Sou escritora, uma mercadora de ficções. Tenho apenas crenças provisórias: crenças fixas me atrapalhariam. Mudo de crença como mudo de casa ou de roupas, de acordo com minhas necessidades. (...) Sou escritora, e o que escrevo é o que escuto. Sou secretária do invisível, uma das muitas secretárias ao longo das eras. Esta é a minha missão: secretária estenógrafa. Não me compete interrogar, julgar o que me é dado. Simplesmente escrevo as palavras e testo, testo a sua integridade, para ter certeza de que ouvi direito."
Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Elizabeth Costello de J.M. Coetzee
Comentários
Valeu mesmo,
bom fim de semana,
Efigênia Coutinho
Escritora
Abraços.
'secretária do invisível'...
(rsrsrsrsrrs) essa foi a melhor até hoje!
Parabéns!
TOP 1000!
Parabéns pelo texto. Acabou de me convencer que o livro é uma boa dica de compra.
Bom fim de semana.
Bjs.
Anny.
Faço coro com a Efigênia e com a Anny: o texto ficou ótimo!
Assim como você, também aprecio quem consegue apresentar, em poucas páginas, aquilo que outros, em centenas, não conseguiriam -- vide Tchekhov, Borges, Machado, Kafka...
*Acabei de comprar A Redoma de Vidro (sua resenha o promoveu para a categoria "livros-que-inspiram-de-repente-uma-curiosidade-frenética").
Abraços
Depois de lê-la fiquei com uma vontade danada de ler esta e outras obras de Coetzee, pois até hoje só li ‘Desonra’ (que também comentei no meu blog) e como você, fiquei muito bem impressionado com o poder de síntese deste escritor. Seus textos são de uma clareza de idéias e de uma força psicológica impressionantes.
Os dois trechos que escolheu também são muito instigantes.
"Uma boa secretária não deve ter crenças. É inadequado à sua função. Uma secretária deve simplesmente estar disponível, esperando o chamado."
Quanto à "Redoma de Vidro" cuidado com este livro, pois ele começa mansinho e vai se transformando aos poucos em algo muito forte, incontrolável mesmo (como a própria Sylvia Plath).
Obrigado pela presença sempre importante por aqui.
Obrigada pela resenha, ela é excelente!
Abraços e uma boa semana para você.
Mas é o caso de se dizer, vai escrever assim lá longe, e nem é necessário, porque de fato ele já o está. Grande lembrança, e vale a pena perder o trem, e não ficar sem esse. Grato e abraços.
Abraço
Meg
Bom, ainda nao li a tua postagem. Deixarei para depois da leitura.
Abraco grande, Chico
Este escritor é para mim um dos melhores da atualidade; sua escrita direta transpõe a África do Sul. Outro livro magnifíco ''A vida e epóca de Michael K'' é também uma obra singular, tão condizente com a nossa realidade (brasileira). Li recentemente dois artigos no site leitor compulsivo que diz tudo sobre Desonra: ''É de se pensar que o drama de David Lurie, nas mãos de outro escritor, se tornaria um pesado calhamaço de reflexões edificantes e críticas à perene condição humana, sobre a ética em tempos pós-modernosos, sobre a diluição da moral, e outras estorinhas de ninar adultos céticos; felizmente, não há elogio maior a se fazer do que afirmar que um livro é tão bom que só seu autor poderia escrevê-lo, e esses são os termos exatos para ‘Desonra’ e sua triste filosofia: a razão, em momentos de crise, nunca basta, e só confunde e martiriza – diante da fatalidade, somos exatamente como cães.(Vinicius)'' Brilhante, não?
Ah, e tua resenha, me leva a comprar este livro,obrigado.
é um mestre, o que justifCoetzeeica todos os seus prêmios e suas atitudes. Numa linguagem elíptica, o personagem desse romance, Michael K ,sempre à mercê dos acontecimentos e da História aparece para desmascarar as injustiças sociais que vão além de uma África do Sul. Quer entender como vive alguém que já nasceu predestinado a ser NADA, e se houvesse uma palavra mais exata para expressar o Vazio de uma vida, talvez ela fosse empregada para nominar Michael, leia este romance. Depois de ler este livro, será difícil olhar um MISERÁVEL - em qualquer canto do mundo - da mesma forma que antes. Coetzee, com sua linguagem afiada transforma o seu Michael K em um determinado momento do livro em MICHAELS, isto mesmo, plural, porque há muitos Michaels perambulando pelas ruas com suas sementinhas no bolso tentando uma possibilidade de vida. MARAVILHOSO, DOLORIDO! Para mim, este é um dos maiores escritores da atualidade, e ele pode se dar ao luxo de não dizer nada quando aparece, porque seus livros dizem tudo. Outro livro, DESONRA, ler e pensar.
Lumdila, adoro os seus comentários que são sempre interessantes e apaixonados, por favor venha sempre aqui no "Mundo de K". Obrigado!