Arundhati Roy - O Ministério da Felicidade Absoluta

Literatura indiana contemporânea
Arundhati Roy - O Ministério da Felicidade Absoluta - Editora Companhia das Letras - 496 Páginas - Capa: Two Associates - Tradução de José Rubens Siqueira - Lançamento: 29/6/2017 (Leia aqui um trecho em pdf disponibilizado pela Editora).

A escritora e ativista política indiana Arundhati Roy ganhou o Man Booker Prize em 1997 com o seu livro de estreia, O Deus das Pequenas Coisas. Este é o seu segundo romance, que levou nada menos que 20 anos para ser escrito, tendo sido novamente finalista do Man Booker Prize em 2017, em uma das edições mais disputadas da premiação nos últimos tempos, que contou com Paul Auster (4 3 2 1), George Saunders (Lincoln no Limbo) e Zadie Smith (Ritmo Louco).

Ao contar a trajetória de sua protagonista, Anjum, uma hijra ou kinnar, nomes como são chamados os hermafroditas, transexuais e eunucos na Índia, a autora escreve sobre a casta marginalizada, formada por comunidades religiosas hinduístas que praticam castrações de meninos em rituais místicos, tolerada no país onde, contraditoriamente, se considerava, até pouco tempo, um crime o homossexualismo. Só em 2018, a Suprema Corte descriminalizou a homossexualidade, revogando uma sentença de 2013 que validava o artigo 377 do Código Penal indiano, uma lei do tempo colonial que punia "relações carnais contra a ordem da natureza" e criminalizava com penas de 10 anos de prisão as relações entre pessoas do mesmo sexo.
"É possível uma mãe ficar aterrorizada com o próprio bebê? Jahanara Begum ficou. Sua primeira reação foi sentir o coração apertar e os ossos virarem cinzas. A segunda reação foi dar mais uma olhada para ter certeza de que não se enganara. A terceira reação foi rechaçar aquilo que havia criado enquanto suas entranhas entravam em convulsão e um fino fio de merda escorria por suas pernas. A quarta reação foi considerar a possibilidade de matar a si mesma e à criança. A quinta reação foi pegar o bebê e apertá-lo contra si enquanto caía numa fenda entre o mundo que conhecia e mundos cuja existência ignorava. Ali, no abismo, girando na escuridão, tudo o que tinha por certo até então, cada coisa, da menor à maior, cessou de fazer sentido para ela. Em urdu, a única língua que conhecia, todas as coisas, não apenas as coisas vivas, mas todas as coisas — tapetes, roupas, livros, canetas, instrumentos musicais — tinham gênero. Tudo era ou masculino ou feminino, homem ou mulher. Tudo, menos seu bebê. Tudo, menos seu bebê. Sim, claro, ela sabia que havia uma palavra para os iguais a ele — Hijra. Duas palavras, na verdade, Hijra e Kinnar. Mas duas palavras não fazem uma língua." (pp. 17 e 18)
O Ministério da Felicidade Absoluta é um romance forte sobre gente que não existe oficialmente, sobre a discriminação de um sistema de castas que perpetua as desigualdades "como parte de suas escrituras", sobre os desaparecidos nos conflitos para libertação da Caxemira, sobre gente que é expulsa para as periferias das grandes cidades porque "são muitos para serem mortos simplesmente", banidos para os "arredores industriais das cidades, nos quilômetros de pântanos brilhantes compactamente cobertos de lixo e sacos plásticos coloridos, onde os removidos tinham sido 'reinstalados', o ar era químico e a água, venenosa."

Anjum, que nasceu menino, até os pais notarem que era na verdade um hermafrodita, simboliza bem as contradições do país, com as diferentes facções em guerra dentro do seu próprio corpo. Um bom exemplo da prosa da autora está na magistral e irônica descrição da cidade de Nova Delhi como uma mulher velha e cansada (Vovó) que é transformada na capital da Índia após a independência em 1947 e remodelada para servir de símbolo do desenvolvimento econômico do país, "a nova superpotência favorita do mundo", à custa de profundas desigualdades sociais da população vivendo em favelas e assentamentos, impossível não notar as semelhanças com um certo país em desenvolvimento localizado na América do Sul, se é que me entendem.
"Em volta dela, a cidade se estendia por quilômetros. Feiticeira de mil anos, cochilando, mas não dormindo, mesmo a essa hora. Viadutos cinzentos serpenteando de sua cabeça de Medusa, se emaranhando e desemaranhando debaixo da luminosidade amarela de sódio. Corpos adormecidos de gente sem-teto enfileirados em suas altas calçadas estreitas, cabeça e pés, cabeça e pés, cabeça e pés, num elo à distância. Velhos segredos se desdobravam nas rugas de sua pele solta de pergaminho. Cada vinco era uma rua, cada rua um carnaval. Cada junta artrítica um anfiteatro desmoronado onde histórias de amor e loucura, burrice, prazer e indizível crueldade se desenrolavam havia séculos. Mas agora seria o alvorecer de sua ressurreição. Seus novos senhores queriam esconder as nodosas varizes debaixo de meias arrastão importadas, apertar seus peitos murchos em sensuais sutiãs com bojo e enfiar seus pés em sapatos de salto alto e bico fino. Queriam que ela rebolasse os velhos quadris rijos e reposicionasse os cantos de seu esgar para cima num sorriso congelado e vazio. Foi o verão em que Vovó virou uma puta.[...] Ela viria a ser a supercapital da nova superpotência favorita do mundo. Índia! Índia! O canto se erguera — em programas de televisão, em vídeos de música, em jornais e revistas estrangeiros, em conferências de negócios e feiras de armas, em conclaves econômicos e reuniões de cúpula ambientais, em feiras de livros e em concurso de beleza. Índia! Índia! Índia!" (pp. 114 e 115)
O livro me lembrou muito de Os filhos da meia-noite de Salman Rushdie porque a narrativa ficcional também é mesclada com a história da Índia contemporânea, eventos como a guerra indo-paquistanesa de1965, o assassinato da primeira ministra Indira Ghandi em 1984, os diversos conflitos étnicos e religiosos internos, principalmente entre as populações hindus e muçulmanas, os movimentos locais de libertação e independência da Caxemira, assim como a disputa com o Paquistão e a China pelo controle da região. 

A narrativa fragmentada vai se consolidando quando improváveis personagens têm seu destino entrelaçado na Hospedaria Jannat, construída aos poucos, dentro de um cemitério abandonado, por Anjum e outros excluídos. Tilo, ou Tilottama, amante de um líder do movimento separatista na Caxemira, um alto funcionário do setor de inteligência do governo, apaixonado por ela, e muitos outros irão se encontrar na cidade de Nova Delhi, nesta estranha hospedaria, à margem da sociedade, lugar de gente caindo que precisa se agarrar a outras pessoas.

Enfim, uma leitura muito enriquecedora e importante como denúncia dos abusos cometidos contra os direitos humanos na Caxemira, que provavelmente exigirá do leitor algumas consultas paralelas ao Google para entender melhor os eventos históricos e aspectos da rica herança cultural da Índia. Mas, de qualquer forma, um texto muito sensível do ponto de vista literário e uma homenagem aos excluídos de todo o mundo que insistem em ser felizes, apesar de tudo.

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