Ana Elisa Ribeiro - Dicionário de imprecisões

Poesia brasileira contemporânea
Ana Elisa Ribeiro - Dicionário de imprecisões - Editora Impressões de Minas - 132 Páginas Projeto gráfico de Elza Silveira - Ilustrações de Wallison Gontijo - Lançamento: 2019

O projeto do livro tem como ponto de partida uma ideia original e muito bem executada por Ana Elisa Ribeiro: fazer poesia com a multiplicidade de definições de algumas palavras, prova de que somos incapazes de dominar por completo o léxico do nosso próprio idioma e que, em alguns casos, mesmo os dicionários tradicionais podem ser fontes pouco confiáveis. Sempre com uma abordagem inteligente e bem-humorada a autora nos apresenta alguns verbetes inusitados que podem revelar, por exemplo, certos preconceitos de gênero enraizados na sociedade ou simplesmente servir de motivo para escrever mais um poema.

Entendo que as tais imprecisões mencionadas no título são decorrentes do caráter incerto do nosso viver, sujeitando as palavras às percepções vivenciadas individualmente e que nenhum dicionário, por mais completo que seja, pode definir. A poesia trabalha justamente nessa região imprecisa dos sentimentos e é nessa ligação improvável entre objetividade e subjetividade que as palavras e poemas encontram um espaço mágico para sua existência, ganhando novos e improváveis significados. Se você acha que a leitura de dicionários é uma tarefa apenas para filólogos e demais estudiosos da língua vai se surpreender com este livro.

Amor (p.22)
Substantivo masculino mas de todos os gêneros, singular

Acalmar os ânimos. Arrefecer.
Velocidade de cruzeiro.
Sujeito a derivações, desvirtuações, vícios e fim.
Ver paixão.

Ana Elisa Ribeiro se arrisca a definir sentimentos tão complexos como o amor e a paixão, mesmo sabendo da impossibilidade de tal propósito mas, nesse exercício de criatividade, consegue algum sucesso e um sorriso de satisfação no rosto do leitor que acaba se reconhecendo de alguma forma. Mesmo quando lida com objetos (como no verbete Livro, reproduzido abaixo), a forma é sempre a de um dicionário, mas os critérios acabam sendo abstratos (livros podem ser perigosos, são feitos para perturbar etc).

Livro (p.65)
Substantivo masculino aqui singular, sujeito a plural

Objeto controverso, de forma, textura, tamanho
e natureza variáveis.
Quase todos concordam: perigoso. Alguns, extremamente.
Habitam à beira da cama, em mesinhas, cadeiras, banquetas,
mas também em estantes onde se juntam – organizadamente
ou não – a outros, menos e mais importantes, e onde
repousam virgens ou se dão ao deleite,
sendo indecentemente abertos quando se quer.
Reproduzem-se em máquinas que os copiam
à semelhança uns dos outros,
ou de uma matriz, mas desde meados do século XX
vêm se tornando fantasmagóricos,
reproduzindo-se antes de existirem
ou existindo por meio de materialidades instáveis e variáveis.
Sensíveis à água e ao fogo, em vários casos, ao toque.
Duráveis, conforme o cuidado de seus proprietários
ou a fúria censora do momento.
Feitos para conter, para transmitir e
para perturbar, no que têm tido êxito.

No verbete Dicionário (p. 41), um belo exemplo da inutilidade de todo esforço de classificação: "Grande parte das coisas do mundo são / desconhecidas e, então, parecem depender de um dicionário / para existirem. Mas não existirão só por isso. / Desse modo, o dicionário deve ser lido com intensa fé." Afinal, toda definição "é também uma tentativa de recortar, cercar, delimitar, excluindo mais do que explicando", Definição (p. 37).

Paixão (p.89)
Substantivo feminino singular

Assombro, susto; desgoverno e desequilíbrio.
É químico, insolúvel.
Efêmero, graças a Deus.

Tão verdadeiras são as descrições apresentadas no livro que, desconfio, muitas delas devem ter inspiração autobiográfica e, coisa óbvia, mas que nunca havia pensado, que definição melhor pode haver para a palavra poeta (de qualquer gênero) do que um poema.

Poeta (p.99)
Substantivo comum de dois ou mais gêneros,
no entanto controverso porque um se considera
em sua posse exclusiva

Acordei em Paris.
A poeta saía do jardim
[com seu bloco de notas.
Provavelmente atrapalhei
[seu processo criativo
ou dei-lhe novo mote.

Acordei em Paris.
Em vez de pensar nas
[visitas aos pontos turísticos,
só penso em pães e geleias
além das ruas com folhas 
vermelho-amarelas pelo chão.

A poeta deve estar dormindo
[enquanto me pergunto
o que despertará seus próximos
poemas famosos.

A edição é valorizada pelo acabamento cuidadoso e artesanal que conta com ilustrações de Wallison Gontijo em papel vegetal, contrastando com as páginas dos verbetes-poemas. Um livro que se lê com muito prazer e deixa saudade, por sinal uma palavra que mereceu três definições diferentes neste dicionário poético, todas insatisfatórias e imprecisas, mas muito lindas!

Poesia brasileira contemporânea
Sobre a autora: "Ana Elisa Ribeiro é mineira de Belo Horizonte, nascida em 1975. Insiste na poesia desde pelo menos 1997. Autora de, entre outros, Anzol de pescar infernos (SP, Patuá, 2013, semifinalista prêmio Portugal Telecom), Xadrez (BH, Scriptum, 2015), Álbum (BH, Relicário, 2018, prêmio Manaus). Foi uma das editoras da coleção Leve um Livro, que distribuiu poesia contemporânea em Belo Horizonte por três anos, na forma de livros impressos gratuitos. Participou de eventos literários no Brasil, na Colômbia, em Cuba e na França. Publicou em diversas antologias em português, inglês, espanhol e francês. Doutora em Linguística pela UFMG. Professora do CEFET-MG."

Comentários

sonia disse…
A imaginação e criatividade do escritor são infinitas....

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