Deborah Dornellas - Por cima do mar

Por cima do mar
Deborah Dornellas - Por cima do mar - Editora Patuá - 360 Páginas - Projeto gráfico de Beatriz Agnelli - Ilustrações de Deborah Dornellas - Orelha de Lilia Guerra - Lançamento: 2018.

O romance de estreia de Deborah Dornellas, vencedor do Prêmio Casa de Las Américas, categoria Literatura Brasileira, surpreende pelo cuidado e veracidade na criação da protagonista, Lígia Vitalina da Conceição Brasil, uma mulher negra que relembra passagens de sua vida desde a infância pobre em Ceilândia até o tempo presente, já casada e morando em Angola. Uma obra que reflete sobre a diáspora dos africanos "que ficaram pelo caminho, mortos nos porões dos navios-túmulos e jogados ao mar-túmulo" ou "mortos logo ao chegar à terra estranha". A personagem faz uma travessia Atlântica inversa, retornando ao local de origem dos antepassados.

Lígia Vitalina é uma excluída do sistema assim como o pai, um dos muitos trabalhadores que imigraram para construir a cidade de Brasilia e, depois, apelidados de candangos, foram tratados como invasores e expulsos para regiões distantes do Plano Piloto por meio da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), no início dos anos setenta, procedimento que removeu moradores da vila IAPI para a região que viria a se chamar Ceilândia. Um período histórico normalmente ignorado, assim como os conflitos dos trabalhadores com a Guarda Especial de Brasília (GEB) em acampamentos das construtoras. A visita de Lígia ao túmulo do pai, Serafim, enterrado no Distrito Federal, é uma homenagem aos candangos que nunca voltaram para as suas cidades, ficando para sempre sob a terra vermelha do Planalto Central. 
"Não havia epitáfio, só o nome completo dele, Serafim Bemol Brasil, e as datas de nascimento e morte, acima dos nomes dos lugares onde tinha nascido e morrido, Crato-CE, Ceilândia-DF. Fiquei alguns minutos olhando para aqueles números vazios, 10 de julho de 1939 - 12 de março de 1977. Uma pessoa é mais que um punhado de números. Senti falta de uma frase, um verso, uma homenagem. Se eu tivesse algum instrumento de entalhar, teria gravado para sempre palavras bonitas naquela hora. Palavras que dissessem a mim mesma e a quem passasse por ali, a minha mãe, meus irmãos e minha tia, a Jorge Preto e aos outros candangos, como papai foi importante para todos que o conheceram. / Olhei em volta, buscando alguma coisa que não sabia bem o que era. Avistei um caco de brita pequeno e pontiagudo. Peguei a pedrinha e desenhei na superfície caiada: 'Ao meu querido pai, que me ensinou a entender a luz, meu amor e gratidão eternos. De sua filha, Vitalina'. [...] Eu sabia que a primeira chuva ou mesmo o orvalho apagariam minhas palavras, mas não me importei. Uma calma diferente me preencheu. Saí do cemitério sob uma chuvinha rala, água boa em época de seca. Com os tênis já sujos de terra, chorei meu choro de filha. [...] Uma pessoa é muito mais do que um punhado de palavras." (pp. 127 e 128)
Apesar das adversidades e de sua personalidade tímida, Lígia conseguiu ter acesso à Universidade de Brasília, em uma época em que praticamente não haviam negros no Campus, formando-se como historiadora e concluindo ainda o Mestrado e Doutorado. O preconceito e a violência, sempre presentes, fizeram com que ela se sentisse uma estrangeira ou intrusa "invisível" no Plano Piloto. É a personagem que alerta no início do livro, em uma espécie de carta: "Algumas passagens estão aqui para não ter de me lembrar mais delas, embora me lembre todos os dias. Outras eu registro para delas nunca me esquecer." (p. 9) 
"Saio de casa vestindo roupas de cores neutras. Chego até a parada de ônibus em silêncio, aceno para o primeiro que passa. Entro e me sento no fundo. Viajo calada até a rodoviária do Plano Piloto. Desço do primeiro ônibus e espero na fila para embarcar no segundo, para a universidade. Subo os degraus e me sento no fundo. Algumas pessoas com cara de universitárias, quase todas brancas, ou quase brancas, olham para mim, mas tenho certeza de que não me veem. Mesmo assim, recolho meu corpo, roupas, mochila. Não me olhem. Não estou aqui. Há apenas um espaço vago, que poderia ser ocupado por uma pessoa. Mas não há ninguém." (p. 35)
Certamente há muitas coisas que Lígia desejaria esquecer além do racismo, incluindo um estupro sofrido não em Ceilândia, mas na saída da faculdade. É irônico que esta violência não tenha ocorrido na região da periferia e cometida por dois jovens moradores do Plano Piloto. Os efeitos do sofrimento psicológico decorrente dessa agressão são destaques de rara sensibilidade na ficção de Deborah Dornellas, "Passei anos da minha vida guardando dentro de mim todos os detalhes do ataque. Aqueles escrotos me violaram o corpo e a alma naquele dia. Parte de mim ficou no chão seco do cerrado" (p. 170)
"As periferias do mundo são trágicas. A vida real é uma tragédia. E nós somos a vida real. Há muitas mortes na vida real. As pessoas da periferia morrem muito. Pretos e pobres morrem aos montes todos os dias. Na Ceilândia, no Gama, nas favelas, no Brasil, nas Américas, na Ásia, em África, por toda parte. Na nossa tragédia, o coro não canta nem fala. Não há catarse nem alívio. Não há refúgio nem oráculos. A nossa é a grande tragédia. A maior delas. Há milênios somos empurrados para as latrinas do mundo, e querem garantir pela força que lá fiquemos até a morte, manietados e mudos. Fingem que nos aceitam no meio deles, mas nos cospem na cara cada vez que colocamos a cabeça para fora. Vivemos menos, morremos mais, morremos jovens, de mortes violentas. Quem se importa? A tragédia é vossa, vivam e morram com ela, dizem. Não. Não Mais" (p. 165)
A construção do romance alterna passado e presente em uma dinâmica que mostra os ganhos e perdas de Lígia Vitalina no seu crescimento emocional até atingir a maturidade como mulher em Angola. A narrativa é feita a partir de fragmentos de textos que a protagonista organiza com base em antigas anotações de seus cadernos de adolescência, incluindo poemas. As lindas ilustrações da própria autora, inseridas com as epígrafes na abertura de alguns capítulos, só valorizam o livro como obra de arte. Muito recomendado.


Ilustração de Deborah Dornellas


Sobre a autora: Deborah Dornellas, escritora, jornalista e artista plástica, é uma carioca criada em Brasília que mora em São Paulo. Em 2001, concluiu o mestrado em História Cultural (UnB) com um trabalho sobre o maracatu nação pernambucano, o que a levou para dentro do universo da cultura popular brasileira de matriz africana, de onde nunca mais saiu. É também pós-graduada em Formação de Escritores (ISE-Vera Cruz). Em 2012, publicou Triz, uma reunião de poemas. Integra o Coletivo Literário Martelinho de Ouro desde 2013 e participou de todas as publicações do grupo. Cruzou o Atlântico pela primeira vez em 2016, para ver Angola de perto e alimentar-se de histórias. Por cima do mar é seu primeiro romance."

Comentários

Adriane Garcia disse…
Excelente resenha para um livro excelente.
Alexandre Kovacs disse…
Obrigado pela visita e comentário Adriane!
sonia disse…
Achei que na vida real a escritora teria voltado a morar em terras africanas. Morar no Brasil é sentir de forma mais acentuada o preconceito racial que aqui impera! Isso será talvez matéria prima para outros romances. Oxalá!!!

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